Colunistas - Paulo Wainberg

Dias contados


Meus dias estão contados. Não sei quantos são, por pura preguiça. Mas é fácil saber exatamente quantos dias vivi, do meu nascimento até hoje. É reconfortante saber disto? Acho que não. Para que serve essa informação? Em que ela acrescenta alguma coisa, na minha cultura? Nada. Absolutamente nada.

Se alguém, entretanto, estiver interessado nisto, pode fazer a conta e, se achar importante me informar, me informe.

Já fui um grande leitor de bula de remédio. Abandonei o vício porque passei a usar óculos e, mesmo com eles, a leitura ficou difícil. Muito aprendi, lendo bulas de remédio e esqueci tudo.

Já fui investidor da bolsa de valores. Não ganhei, não perdi e não empatei. Porque meu investimento se limitava a acompanhar, no jornal, a cotação das ações, diariamente. Fazia apostas, se eu comprar hoje esta ação, por quanto ela será vendida amanhã?

Mal posso esperar para acrescentar mais um dia na minha conta.

Última atualização em Qui, 17 de Janeiro de 2013 07:06
 

Tapa na bunda


Mal nasci, levei uma palmada na bunda, como se tivesse feito algo proibido. Dói até hoje essa palmada, desferida por um estranho, num mundo para o qual não pedi para ir.

Vivia muito bem, lá onde estava. Era quentinho, agradável, quase nenhuma turbulência, comida abundante, dormia a qualquer hora e não tinha compromisso.

De repente me puxaram pela cabeça e entre no parafuso cósmico que me fez viajar milhares de anos-luz pelo Universo e, como recompensa, uma palmada na bunda.

No primeiro momento, estranhei, não sabia o que era dor.

A sensação foi diferente de tudo o que experimentara e, para completar, senti uma enorme dificuldade para respirar.

Abri os olhos e não entendi nada, a dor na bunda me incomodava, a falta de ar me incomodava e fiz o que me restava saber, na tentativa louca de compreender e sobreviver: Abri o berro.

Sufoco e dor foram minhas primeiras experiências neste mundo.

Nunca mais consegui voltar ao meu planeta de origem, passei a vida tentando, recebi explicações de todo o tipo e ninguém respondeu à única pergunta que eu tinha: Por que me trouxeram para cá, se eu não queria vir.

Até hoje não me conformo com tamanho desaforo, falta de consideração e ofensa aos meus direitos humanos.

Em busca de consolo, imagino que outro ser, algum dia, me pegue pela cabeça, me coloque no parafuso cósmico e me encaminhe para outro mundo, melhor do que este.

Mas o consolo me sai pela culatra, que tipo de experiências terríveis terei que suportar, nos primeiros segundos do novo mundo?

Última atualização em Seg, 14 de Janeiro de 2013 14:16
 

Quando Acontece

Certas coisas acontecem além do espaço, do tempo e da distância. É como estar e não estar, sentir e não sentir, permitir e proibir e… lá no fundo, no mais escondido, desejar.

Sabe-se que, às vezes, dois não são um e, às vezes, um é dois.

É sempre mais rico quando dois sentem por dois, mas também é muito rico quando um sente por dois e quando dois sentem por um.

Certas coisas acontecem quando não deviam acontecer e, honestamente, são as melhores coisas, porque se não deviam acontecer e aconteceram, tudo será novo, as emoções irão borbulhar o corpo todo, mais frágil, mais dócil, mais afeito.

As coisas que acontecem quando devem acontecer fazem parte da rotina, do cotidiano, do dia a dia, da mesmice.

Com elas estamos acostumados, sabemos lidar, elas não ameaçam, elas mantém a ordem e a repetição é simplesmente a vida em ordem.

Quando o que acontece não devia acontecer, é nascer novamente, é ver sentido na vida, é exultar e a palavra expectativa adquire outra dimensão, muito além da lógica, fazendo figa para a lógica e é quando temos coragem de jogar tudo para o alto, sair de baixo e viver o, quem sabe, grande amor, a aventura final, a paixão devastadora que tanto enriquece quanto destrói, mas faz muito mais bem do que não.

Sim, a diferença entre estar vivo e estar morto é que, vivo, certas coisas acontecem que, na morte em vida, não são permitidas.

A diferença entre estar vivo e estar morto é permitir que certas coisas aconteçam, vivê-las até as últimas consequências e depois, se for o caso, morrer em paz.

Última atualização em Ter, 08 de Janeiro de 2013 13:09
 

Comprar óculos

Quando Haroldo precisou usar óculos, Clarinha disse que ia com ele na ótica.

Haroldo experimentou mais de vinte modelos, Clarinha não gostou de nem um dos que ele gostou e ele não gostou de nem um dos que Clarinha gostou.

Era um homem, o vendedor, e Haroldo percebeu que ele se aliava à Clarinha, aceitando todos os comentários dela sobre os óculos que ele gostava:

Clarinha: Este nem pensar! Você ficou com cara de fuinha.

Vendedor: É, ele encolhe seu rosto.

Clarinha: Experimenta este aqui, você tem o rosto largo, os óculos não podem ser pequenos.

Haroldo experimentava e aí sim, achava que ficava com cara de fuinha.

Obviamente, acabaram comprando os óculos que Clarinha escolheu, coisa que Haroldo sabia que ia acontecer desde o momento em que saíram de casa.

O argumento final, decisivo e contra o qual ele nada pode contrapor, foi quando Clarinha falou, com sua típica voz de irritação anunciando o conflito iminente:

Clarinha: Haroldo, você está precisando de óculos porque não está enxergando direito, você está ficando cego Haroldo! Você mal vê o que está na ponta do seu nariz! Como é que você vai saber o que fica bem em você? Moço, nós vamos levar este aqui.

De volta, no carro, Haroldo falou baixinho, para Clarinha não ouvir muito, num tom de criança emburrada:

Haroldo: Se eu posso enxergar para dirigir…

Clarinha: Chega, Haroldo!

Última atualização em Dom, 06 de Janeiro de 2013 06:39
 

A nova espécie

Ao contrário do que se pensava, o fim do mundo não foi a destruição do planeta e do sistema solar. Apenas a vida humana desapareceu, como se uma varredura de raios cósmicos calcinasse as pessoas.

Claro que, para a espécie humana de então, foi o fim do mundo, não havia mais inteligência racional e, portanto, tudo o que continuou existindo, para os humanos, deixou de existir.

A lógica e seus paradoxos perdeu o significado e sua influência nas demais espécies, incluindo os reinos animal e vegetal, que foram obrigados a se virar sozinhos, sem a interferência de uma única pessoa.

Estranhamente, para os parâmetros humanos, elas conseguiram, o reino vegetal permaneceu cada vez mais florido, colorido, denso e produtivo, as frutas davam ao natural e serviam de alimento a dezenas de animais que, igualmente, continuaram existindo sobre a face da terra.

Muitas espécies, ameaçadas de extinção, realmente se extinguiram, provando que o fenômeno não era causado pelo Homem e sim pela própria Natureza, que é implacável com os seus ciclos.

As cidades, com o passar dos séculos, foram absorvidas pelas florestas, toda edificação em concreto, cimento e aço desapareceu e o nome Oscar Niemeyer perdeu-se no esquecimento das Eras.

Desapareceram as cidades, pontes, estradas, os carros viraram pó de ferrugem e depois alimento para certas plantas, bibliotecas, discotecas, pinacotecas, inclusive um famoso quadro de Velasquez, perderam o sentido e qualquer significado que, outrora, pudessem ter.

Milhões de volumes da Bíblia Sagrada, Velho e Novo Testamento, foram rapidamente consumidos por traças ávidas, baratas vorazes e cupins implacáveis, seu ensinamentos perdidos, para sempre, naquilo que se designou chamar a poeira dos tempos.

Não mais se ouviu falar em tarifas e juros bancários, a corrupção foi varrida do planeta e a psicanálise entrou numa depressão profunda, que nem Freud conseguiu explicar.

O planeta Terra, devolvido assim aos seus habitantes, acompanhou o Universo em sua intransigente expansão, e nossos mares entraram novamente em ação, fazendo com que algas cruzassem com amebas gerando filhos curiosos com a luz lá de cima.

Os séculos passaram, a evolução seguiu seu curso e chegamos aos tempos atuais e a atual Civilização, constituída de um único povo.

Pesquisas arqueológicas e interpretações permitiram aos nossos sábios compreender um pouco daquelas pessoas que habitaram o Planeta até o dia em que se deu, como resolvemos denominar, a Grande Limpeza.

Morfológicas semelhanças entre nós e os desaparecidos, são notáveis, porém algumas diferenças são essenciais e uma delas fundamental, graças a qual podemos viver, construir e usufruir do planeta, em doce paz e permanente crescimento.

Todos os estudos comparativos permitem concluir que o ser humano varrido da face da Terra pela Grande Limpeza criou um complexo sistema de conquista, guerra, violência e ódio graças a um detalhe anatômico que a nova evolução suprimiu.

Com efeito, na nova raça humana que emergiu, após a Grande Limpeza, as mulheres não possuem hímen.

Última atualização em Qua, 19 de Dezembro de 2012 09:31
 


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