Colunistas - Paulo Wainberg

Se eu fosse pintor



Se eu fosse pintor, meu quadro seria sutil e abrangente, com cores evasivas e lúcidas, com textura opaca e brilhante.

Quem olhar meu quadro verá a si mesmo do modo que gosta de se ver e também verá as obscuridades que gosta de esconder.

Meu quadro seria o livro das revelações fugazes, as figuras desenhando os cordões umbilicais da existência, os contornos revelando matizes jamais vistas nas tropelias do amor.

Meu quadro seria o oposto da arte, um composto de sorte, alegria, azar e melancolia.

Quem olhar meu quadro irá chorar e rir, amar e sofrer, dormir sem sonhar e sonhar sem dormir.

O título do meu quadro seria individual, cada um receberia um sinal para dar-lhe o nome final, a ilusão real, a continuação terminal.

Se eu fosse pintor, meu quadro seria figurativo e representativo, clássico e moderno, expressionista e experimental, natureza viva e morta e quem olhar meu quadro nele verá o buraco sem saída e, também, uma porta.
Última atualização em Seg, 19 de Agosto de 2013 10:06
 

Inútil nostalgia

Eu adorava filhoses. Quando tinha filhoses em casa eu me empanturrava. Hoje não tem mais. Filhoses viraram Wafles, sem o gosto de filhoses.

E o mil-folhas, onde foi parar? Aquele creme que escorria pelos lábios melecando o pescoço, coisa que sempre odiei. Mais velho, apreendi a não me lambuzar. Mas não há mais mil-folhas, não tantos quanto havia.

O mundo era tão simples que comer uva com melancia criava uma pedra no estômago que matava em meia hora.

Entrar no mar logo depois do almoço? Congestão e morte certa. Esperava-se três horas.

Era tão simples ouvir a novela no rádio e adormecer antes do fim do capítulo. Quando tinha filme de terror na matinê era a glória suprema, só perdia para o John Waine e o Alan Ladd.

E trocar gibis no cinema era simples demais. Ia com os lidos e trocava pelos não lidos.

Uma aventura! Simples.

Era simples caminhar nas ruas à noite, só cachorros atrapalhavam, cachorros de rua, vira-latas que rosnavam à passagem, mas jamais atacavam.

Mas dava medo. Um medo simples.

Era simples enfocar o banho e viver com a sola dos sapatos furada, devido ao futebol na calçada.

Tênis só nas aulas de educação física, os mais duráveis eram os guides, quase uma botinha.

Era tão simples viver apaixonado pela colega de aula, cada semana uma, sem jamais ser correspondido.

Como era bom comer as empregadas domésticas e depois pegar gonorréia ou chato, o difícil era contar em casa onde nos obrigavam a tomar sulfa.

Pilicilina para gripes tinha que ser injeção e doía muito, era simples também, mas um horror, aquelas agulhas rombudas e fervidas e o líquido entrando no músulo e quase paralisando o braço. Ou incomodando dias, cada vez que se sentava.

Ah a caxumba, as bochechas inchadas e uma semana na cama, sem precisar ir à aula.

Lembrei dessas coisas ontem, quando fui botar gasolina e comprar um refrigerante numa loja de conveniências.

Última atualização em Sex, 02 de Agosto de 2013 13:11
 

Copo quebrado


O último copo de quebrei, lembro como se fosse ontem, foi ontem. Escorregou-me da mão o ingrato, como se fora uma nota de cem, e espatifou-se com glória, espalhando cacos no piso e pondo a perder todo o seu vazio interior, eis que nele ainda não havia posto líquido.

Sentei na cadeira para meditar sobre o ocorrido e observar as estranhas circunstâncias que os estilhaços produziram na minha vizinhança, alguns luminosos, outros maiores, todos ameaçadores.

Analisei a metáfora que se punha, ao vivo, diante dos meus olhos, um copo vazio estilhaçado perdendo subitamente o sentido de sua existência, transformado em outra coisa, um corpo devorado por vermes, uma lâmpada queimada, um foguete espacial sem gasolina, eu ali sentado.

Calculei metaforicamente que o todo anterior se transformou em dezenas de todos posteriores, cada um destinado a outras plagas, outros cantares e concluí que antes de ser copo, o copo quebrado fora outro ser de origem suspeita destinado a ser copo.

Embrenhei-me no raciocínio e caçoei de mim, que antes de ser eu era outra coisa destinada a ser eu e ali estava, em definitivo, a explicação inútil para o sentido da vida, transformar-se em cacos e estilhaços.

Mais tarde, bem mais tarde, lembrei da razão de ter pegado aquele copo e do que pretendia colocar nele. Agora não adiantava mais. Estava tudo perdido.

Com resignação, ergui da cadeira, peguei a vassoura e a pá, recolhi os cacos e estilhaços e joguei no lixo, o legítimo destino final dos copos quebrados.
Última atualização em Seg, 15 de Julho de 2013 14:18
 

Dora e a Avenida

 

Quando a avenida me perfurou, não acreditei mesmo.

Eu andava a esmo na vida, meio assim com pena de mim e a avenida frondosa não teve pena, me atravessou maldosa e ainda riu de mim.

Dor não senti, avenida era metáfora da visão estratosférica de arlequim, colombina e pierrot que derrubaram meu chatô, juro que quase morri.

Minha visão periférica evitou dano maior e coisa e tal, a avenida não atingiu órgão vital, apenas uma paráfrase da metafísica existencial, escondi meus espantalhos entre os galhos de um carnaval e, como na cidade era costume, borrifei meus adereços com jatos de lança-perfume, engoli os canutilhos, arranquei as miçangas de fé e fui refestelar meu tédio nas portas de um cabaré.

A avenida impiedosa me alcançou na escada da entrada do lupanar onde Dora, a gostosa, me esperava pra dançar.

Vasculhei os arredores atrás de outros amores que, aliás, nunca tive, Dora não me namora, Fernanda não me dá banda e Maria Aparecida, coitada, era um tico, quase nada.

Quando a avenida me devorou com sua boca de canil, você andava muito louca, enfeitiçada, a mil. E eu, pobre pagão, paguei todas as contas da ilusão com a moeda que tinha, um saco de farinha, uma loção pós barba e dois quilos de feijão.

Dora, a retirante, retirou-se da vida e eu escapei da avenida com um bilhete só de ida.

Hoje que ando a esmo, assim com pena de mim, não me entrego, não mesmo! à avenida e ao que ela fez de mim.

Última atualização em Qua, 10 de Julho de 2013 13:51
 

Brasil, junho de 2013

Sobre os movimentos, passeatas e manifestações de junho de 2013 em todo o  Brasil, principalmente no que diz respeito à reação policial aos atos de vandalismo praticados por criminosos entre as multidões, sugiro esta reflexão:

E se você fosse da polícia de choque, treinada para o ataque e para o conflito.

E se durante uma manifestação, um grupo começa a quebrar, invadir lojas, roubar, depredar, incendiar e destruir.
E se você recebe ordens de seu comando para conter os atos de vandalismo e prender os criminosos.
E se você investe contra o bando de vândalos você:
a) Pergunta delicadamente a cada pessoa no seu caminho se ele é vândalo?
b) Ataca o grupo sem identificar indivíduos e tenta proteger o bem público, deter e prender os criminosos?
Não, não estou defendendo violência policial, muito pelo contrário. Estou dizendo que a polícia, como um todo, como uma instituição republicana inserida na ordem democrática, tem o dever de impedir a prática de crimes, deter e prender os criminosos.
Estou dizendo que numa multidão agressiva, é impossível à polícia fazer distinções, na hora em que ela, a polícia, tem que responder aos ataques.
A polícia é composta de seres humanos. Cada policial tem medo, tem instinto de preservação, tem treinamento e discernimento.
Porém, e já participei disto nos meus antigos tempos, quando se trata de enfrentar a multidão, é impossível discernir.
Só isto.
Que nos protestos de hoje, os criminosos, traficantes, ladrões, assassinos e outros criminosos comuns, possam ser identificados e excluídos do movimento. É o único modo de a manifestação começar e terminar em paz.

 


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