Colunistas - Paulo Wainberg

Fútil,inutil e dispensável

  • Haroldo e Clarinha mantinham há trinta anos um casamento de inconveniência.
  • Nunca brigavam, jamais discordaram, viviam em harmonia quase perfeita, repetindo os dias com rigorosa precisão.
  • Acordavam juntos, tomavam café juntos, trabalhavam juntos na mesma repartição pública, quintas iam ao cinema, sextas viam televisão e sábados jantavam no mesmo restaurante e volta praticavam o mesmo papai e mamãe da lua de mel.
  • Domingos, segundas, terças e quartas assistiam as séries preferidas na televisão e, antes de dormir tomavam, juntos um copo de leite com bolacha Maria.
  • Nos aniversários, Clarinha dava um par de meias marrons para Haroldo e Haroldo dava um perfume da mesma marca para Clarinha.
  • Nos aniversários de casamento, davam-se um beijo na face.
  • Não assinavam jornais e revistas e ficavam sabendo das novidades pelos colegas da repartição onde ele era escriturário e ela era arquivistas, trabalhavam em andares diferentes e almoçava o mesmo sanduíche no mesmo bar da esquina, dividindo a mesma fanta uva.
  • Não tinham filhos porque nunca quiseram ter, num acordo tácito jamais mencionado.
  • Era de tanta inconveniência o casamento deles que há vinte e cinco anos não trocavam uma única palavra, nem precisava.
  • Atingiram o auge da inconveniência matrimonial numa quarta feira, quando assistiram ao último capítulo da série das quartas, foram para cozinha, encheram os copos de leite, botaram veneno dentro, beberam comendo suas bolachas Marias e, pela manhã, estavam convenientemente mortos
  • Foram enterrados lado a lado, de mãos dadas num duplo caixão e, mesmo sem eles, a repartição continuou funcionando.

 

Última atualização em Sex, 22 de Novembro de 2013 13:00
 

Simples como um logarítimo

Após a hecatombe restou uma única pessoa na face da terra, um homem. Vagou de um lado para o outro, entre escombros e florestas calcinadas até que, c

ansado, sentou à beira do penhasco, olhando o abismo sem fim e pensando seriamente em jogar-se lá de cima.
A vista, ainda que trágica, tinha uma estranha beleza, profunda e aterradora. E assim perdido em contemplação, quase caiu ao ouvir uma voz às suas costas:
- O senhor tem fogo?
É aí que começa o drama: quem fez essa pergunta? É indiscutível o fato de ser o homem o único sobrevivente, ergo, não poderia ser uma pessoa.
Um alienígena talvez, compadecido da Humanidade e seu desastre, vindo à Terra para criar um novo ciclo, fecundar novamente o planeta, salvar a espécie, usando as capacidades científicas que os povos das galáxias com certeza possuem e muito superiores as nossas.
Porém ele queria fogo! Seria um ET fumante que esqueceu a caixa de fósforos ou o isqueiro Bic na astronave? Seria ele um errante das galáxias em busca do fogo desconhecido em outros planetas, para assar uma costela gorda ou cozinhar uma canja de galinha?
Novo drama à vista: obviamente o ser, assim tão evoluído, há muito descobrira o fogo e seus usos, sem mesmo precisar de um Prometheus acorrentado à rocha, tendo seu fígado devorado diariamente por uma águia.
Outra hipótese: As radiações nucleares produziram um acelerado desenvolvimento na inteligência das baratas, dotando-as de poder de raciocínio, fala, sentimentos, ego e superego e, pasmem, inclusive fé em Deus.
A Nova Barata, como se denominaria a espécie, em pouco tempo adquiriu os hábitos da Humanidade quase extinta, inclusive o de fumar, mas ainda não inventara o palito de fósforo. Vendo o humano, louquinha para acender o cigarro preso entre suas antenas, a Nova Barata achou que, com sorte, o último homem vivo na face da Terra era fumante e teria fogo no bolsinho do colete.
Ou, sendo barata, precisava de fogo para eliminar a nova espécie rival alterada geneticamente pela radiação, a raça dos Amores-Perfeitos que desenvolvera extrema crueldade e disputava o Domínio do Planeta com a raça da Nova Barata. Teria o líder imaginado que com fogo seria fácil destruir as pétalas dos Amores-Perfeitos que, ainda por cima, eram ateus. Ou não eram e adoravam o Girassol como o representante divino, o profeta, a voz de Deus na terra.
A Nova Barata, tendente a versões mais radicais, não aceitava os dogmáticos princípios dos Amores-Perfeitos e, por isso, tinha que exterminá-los da face da Terra.
Sinceramente? Também não acredito nesta hipótese. Não vejo como radiações nucleares possam produzir efeitos evolutivos, considerando é claro meus vastos conhecimentos sobre o assunto. Muito antes pelo contrário, acho que as baratas continuariam baratas mais fortes e os amores-perfeitos, dada sua natureza vegetal, seriam dos primeiros a desaparecer sob os ventos núcleoradioativos.
Quem ou o que estaria atrás do homem, pedindo fogo? Não posso aceitar a hipótese de um engano do narrador, isto é, o homem não foi o único e outro sobrevivente havia restado. E casualmente se encontraram naquele penhasco tendo um planeta inteiro a separá-los.
Ridículo.
É inconcebível também que os minerais tenham passado a viver. E, ainda que aceite isso, raciocinando pelo absurdo, para que precisariam eles de fogo? Por mais maluca que seja minha imaginação (ou a sua), dá para pensar num cascalho segurando um palheiro, um cachimbo, um charuto ou, prosaicamente, um cigarrinho?
Não, não é por aí.
Vai um fantasma? Uma alma de outro mundo que escapuliu do Vale dos Mortos e veio ver de perto o produto final da obra? Acho que por aí podemos chegar a algum lugar.
Se eu fosse o narrador não iria resistir: quem pediu fogo ao homem no penhasco foi a alma da sogra dele! Ou do cunhado! Ou do cara para quem ele nunca pagou o empréstimo! Ou – ó supra-sumo do terror – o espírito de um gremista!!!
Mais uma vez o drama aflora: para que uma alma do outro mundo precisa de fogo? O que fará o etéreo ser com uma labareda, uma mera chama, uma simples fagulha?
Caso eu fosse uma alma do outro mundo ia querer qualquer coisa do homem, menos fogo. Atormentá-lo, com certeza. Assombrar o resto de seus dias terrenos, infernizar suas noites, carregar correntes barulhentas pela caverna dele e chocar o último gole de cerveja que ele guardou para uma ocasião especial.
Mas fogo? Nunca. Até porque eu provavelmente viria de um ambiente onde o fogo abunda como areias da praia.
Outra hipótese: o último homem sobre a face da terra enlouqueceu e imaginou uma voz atrás dele pedindo fogo. Entre jogar-se penhasco abaixo e enlouquecer, preferiu continuar vivo e louco, criando pessoas ao seu redor e acreditando nelas como se fossem reais.
Também é insuficiente porque, após a hecatombe, fogo é o que não faltava na superfície, vulcões ativos estariam despejando lava ardente, as profundezas jorrando altíssimas labaredas, o homem podia ser louco, mas não era burro. Não ia imaginar alguém pedindo exatamente aquilo que havia de sobra.
Se eu fosse ele, podes crer, ia imaginar coisa bem melhor, da Juliana Paes para cima.
Tudo bem chega de suspense, vamos logo à revelação, ao esclarecimento definitivo do mistério.
O único sobrevivente após a hecatombe, um homem, admirava a paisagem bela e aterradora, à beira do penhasco, quando uma voz perguntou às suas costas:
- O senhor tem fogo?
Ele se virou calmamente, fez que sim com a cabeça, tirou um isqueiro Bic do bolso do colete e estendeu o braço, entregando o isqueiro a quem pedira, acrescentando:
- Pois não.

Última atualização em Qui, 21 de Novembro de 2013 12:55
 

Eufemismo anal

  • A próstata, segundo eles, é uma glândula exócrina que faz parte do sistema reprodutor dos mamíferos machos.

  • O conceito exige uma definição em termos, para melhor compreensão do significado: glândula todos nós sabemos o que é, pulemos, pois, esta parte.

  • Exócrino é outra conversa. O prefixo “exo”, segundo a corrente dominante entre os morfologistas e pesquisadores de gramática histórica, significa aquilo que está fora, o externo, por exemplo: “exato”, aquilo que não integra o ato, que estão fora dele, sabendo-se que a palavra “exato” decorre da eliminação do hiato “oa”, que figurava em “exoato”, em virtude da evolução do latim clássico para o latim vulgar.

  • Não sei se é verdade, mas como explicação…

  • Outro exemplo clássico encontra-se na palavra “exógeno” que significa, como a palavra está dizendo, fora do gene.

  • Assim que, no contexto conceitual morfológico, “exócrino” seria “aquilo que está fora do crino”.

  • Ao seguir da pesquisa descobrimos que “crino” é o nome vulgar de “crinus mooreai”, palanta da família das amaryllidaceae, originária da África do Sul que produz, perenemente, flores brancas e róseas, necessitando tão somente de regas regulares e esterco como adubo.

  • Conclusão: Exócrino é tudo aquilo que está do lado de fora de flores sul-africanas brancas e róseas.

  • Nesse sentido a próstata é uma glândula constituída do que não pertence às flores sul-africanas.

  • Simples?

  • Não. Nada simples.

  • É que, para eles, exócrino é coisa muito, mas muito diferente. O exócrino, segundo eles, é uma glândula que produz secreções.

  • Portanto a próstata produz secreções, secreções que se combinam com o esperma do mamífero macho que, atingindo o alvo, isto é, o ovário do mamífero fêmeo num dia bom, gera, reproduz, faz nascer mamiferozinhos por todos os lados.

  • A primeira conclusão realmente relevante sobre a matéria é que os mamíferos fêmeos não possuem próstata e, conseqüentemente, estão livres do respectivo câncer.

  • Entretanto o mamífero macho – eu, por exemplo – possuo próstata e todas as suas conseqüências, inclusive as piores. Eles estipularam exames periódicos, indicados aos mamíferos machos a partir de certa idade, para prevenir o, como eles denominam, câncer de próstata, mortal por definição.

  • Assim como os poetas amam a metáfora, os políticos amam a retórica, os profetas amam a parábola, os psicopatas amam a sedução e os racistas amam a porrada, eles amam o eufemismo.

  • Eufemisticamente definiram o ato de enfiar o dedo no cu do mamífero macho como “exame do reto”, um equívoco grosseiro deles, sabendo-se que o ânus, por definição e natureza, é sinuoso e além, apesar e por conseguinte das preferências ideológicas individuais e de cada um, está mais para “exo” do que para “intra”.

  • Dá-se que o mamífero macho – eu, por exemplo – ao atingir a idade preconizada, obriga-se ao procedimento eufemístico anual, qual seja? Levar um dedo no rabo para ver se a glândula secrecional chamada próstata está no tamanho normal, aumentou de tamanho, se ali aparece uma hiperplasia maligna, sabendo-se que hiperplasia significa, singelamente, hiperplasia.

  • E lá se vai o mamífero macho – eu, por exemplo – depois de conseguir hora com ele, resignadamente ao encontro do seu destino, cruel para uns, feliz para outros, indiferente para aqueloutros, os que não sentem nada quando entra e quando sai.

  • Entretanto, por ser da natureza deles, por atender às necessidades psico-psico deles e até mesmo por causa do modelo formativo dos respectivos dedos perfunctórios, uns nos colocam de quatro, outro nos fazem deitar de barriga para cima e pernas abertas, outros nos mandam apoiar os braços e inclinar tudo para traz e os, em minha opinião os piores, nos fazem deitar de barriga para baixo e de pernas fechadas.

  • Pelados.

  • O mamífero macho – eu, por exemplo – submetido à posição determinada, observa com o canto dos olhos os movimentos dele: enfiar uma luva de borracha, vazelinar o dedo indicador e apontando para alvo, vir em sua direção com a naturalidade de quem, por força do hábito, já não distingue um rabo de outro.

  • Pela mente do mamífero macho do momento passam idéias confortadoras como: não vai doer, vai ser rápido, vai ser bom (para uns), não vou gostar (para outros).

  • Enquanto ele fala banalidades o mamífero macho sente a penetração deslizante, um calor inusitado, percebe os movimentos circulares, ouve os sons que ele produz ahan, humm, bom e… terminou, que é quando o mamífero macho descobre como é difícil, o quanto é complicada a relação dele com suas vias excrementais.

  • A eternidade em trinta segundos e não se fala mais nisso.

  • Minutos depois, sentado à frente dele, devidamente vestido, escuta o diagnóstico com lêsmica dignidade, como se nada houvesse acontecido de anormal, como se seu “reto” não tivesse sido invadido, como se não tivesse acabado de levar um dedo de homem no cu, como se, em nome da saúde, ser enrabado fosse um imperativo lógico.

  • Não sou ninguém para afirmar, mas acredito que os mamíferos machos homossexuais também não gostam da experiência porque ela é nada romântica, muito menos evocativa.

  • É um ponto fundamental que distingue os gêneros, pois os mamíferos fêmeos não estão sujeitos à tal manipulação ou, melhor dizendo, dedo-introdução, salvo quando é por prazer.

  • E quando é por prazer os mamíferos se igualam, machos e fêmeos. Nesse caso é tudo de bom.

  • Certa vez perguntei a um deles, já na idade propícia, como se sentia no momento do eufemismo.

  • “Eles”, para quem ainda não entendeu, sãos os médicos em geral e os urologistas e similares em particular.

  • A resposta dele me confortou: – Horrível.

 

(Obs.Foto ilustrativa retirada da Internet para meros fins.....sei lá...foi dificil achar uma foto pra essa crônica - Acontece Curitiba)

Última atualização em Ter, 08 de Outubro de 2013 08:56
 

Conselho politico do céu

E a ganância tomou conta dos povos da Terra e Deus, insatisfeito, convocou seu conselho político  para analisar a situação e adotar medidas emergenciais.

- Miguel – disse o Senhor – a que atribuis a ganância dos homens?

- Atribuo à libido, Senhor, à libido. Para satisfazê-la os homens querem mais, sempre mais.

- E tu, Gabriel, a que atribuis a ganância das Minhas criaturas?

- Atribuo à inveja, Senhor, à inveja. Por causa da inveja, os homens querem sempre ter mais do que os outros.

- E tu, Pedro, a que atribuis a ganância dos Meus seres?

- Atribuo às flores, Senhor. A ganância dos Vossos seres deve-se às flores.

- Como assim, às flores, Pedro. Não entendi a ligação.

- Dizei-me Ó Senhor, o que não entendestes?

- Não vejo nenhuma relação entre a ganância dos homens e as flores.

- E por que as flores não podem ser a causa da ganância, Senhor?

- Bem, num certo sentido… – Diga Paulo, já que elevaste a mão, tens alguma outra ideia?

- Não exatamente, Senhor, mas fico a procurar uma única razão pela qual a ganância dos homens não se deve às flores e não encontro nenhuma.

- Não há, então, motivos para que as flores não sejam a causa da ganância dos homens? Todos concordaram.

- Neste caso, o que me propõem.

- Depende do Vosso desejo, Senhor – disse Pedro com referência. – O que desejais, acabar com a ganância, acabar com os homens ou acabar com as flores?

- Hmmm- cofiou as barbas o Senhor – ainda não tenho uma posição sobre isto. Qual é a opinião Dele Lá Embaixo?

- Opinião não sabemos, mas Ele Lá Embaixo está adorando a ganância.

Desgosto, Deus, com um gesto, desfez o conselho político e com outro gesto trouxe o lá de baixo à Sua presença.

O Lá de baixo chegou numa Mercedes zero, duas portas, capota reclinável, pneus tala larga e todos os assessórios. Completíssima. Desceu, tirou os óculos escuros, ajustou uma prega no jeans e saudou

- Tudo em cima, Brother?

- Sim, aqui em cima, tudo em cima.

- A que devo o convite?

- Preciso acabar com a ganância dos homens.

- ahahahah. Tu e a torcida do Flamengo e do Corinthians juntas. Esquece, Brother, vai para uma empreitada mais fácil, salva as baleias, por exemplo.

- Estou tentando, Estou tentando…

- Faz a reforma política no Brasil.

- Desta já desisti, lá é território teu, ô Lá de Baixo. Pedro acha que as flores são a causa da ganância.

- Fecho com ele!

- Fecha? Você também acha? Então, se Eu acabar com as flores acabo com a ganância?

- Tem que pagar pra ver, Brô.

- Não sei, não sei, há três eternidades não Me sentia assim indeciso.

- Mas afinal, qual é o Teu problema com a ganância?

- Meu? Eu não Tenho nenhum problema, mas Minhas criaturas sim, estão sofrendo de ganância.

- Porra meu, Tu tá por fora mesmo! Há quanto tempo Tu não dá um chego lá? Os caras estão se divertindo, meu. Deixa Tua gente em paz.

- Mas…

- O que tão faturando no Teu Nome é uma grandeza, ninguém tá sofrendo com a ganância.

- Você jura, La de Baixo?

- Juro pelo Teu Nome.

- Então está resolvido. Vou poupar as flores e a ganância que prolifere. E quanto a ti, sultão das trevas, trata de Me arrumar mais crentes.

- Mais ainda? Tudo bem, posso provocar mais tufões, tsunames, furacões, terremotos, programas de tv, aumentar o número de senadores em Brasília, alguma outra ideia?

- Arranja um país aí, para os Estados Unidos invadirem.
Última atualização em Ter, 03 de Setembro de 2013 14:50
 

Olhares


Consegui chegar no setor de internação, o que não e pouca coisa, sabe-se que a maioria das pessoas é barrada no momento de receber o crachá.

Lá, a gentil moça forneceu calhamaços para assinar e antes do final, informou que meu plano de saúde cobria tais e quais procedimentos mediante a utilização de tais e quais instrumentos, médico, anestesista, sala de cirurgia e etc, além de cinco noites com acompanhante.
Imediatamente perguntei qual era a forma de escolha.

- Como? – Indagou ela.

- Como escolho a acompanhante? É por catálogo de fotos, vídeo ou desfile ao vivo?

O olhar dela não foi, sinceramente, bom para mim.

Já na sala de cirurgia, antes de começar, declarei ao anestesista e ao médico que gostaria que a operação fosse feita sem anestesia, o cirurgião havia feito tanto tanto elogio aos recursos cirúrgicos que manifestei interesse em assistir sua técnica operatória.
O olhar dele não foi, sinceramente, bom para mim.

Então pedi encarecidamente que não esquecessem de me acordar.

Já na UTI, depois de uma cinco horas, informe à enfermeira que sim, já tinha feito a porra do xixi que eles vinham me perguntar, de quinze em quinze minutos se eu não queria fazer.

Preso ao meu braço esquerdo, em inúmeros buracos venosos, a maior rede de fiação que já vi na vida, uma verdadeira usina elétrica cujos terminais produziam ruídos incessantes, ding-dongs de elevadores chegando, partindo, alarmes de incêndio e um bip-bip infernal que apenas no dia seguinte fiquei sabendo indicar as batidas do meu doce coração.

O pior de tudo era uma espécie de dedal colocado no meu indicador direito que, com o tempo, ia enterrando as ranhuras na pele provocando a agradável sensação de desconforto carnal, como se ela estivesse sendo penetrada por agulhas do Diabo, mal doía mas não deixava esquecer.
Foi lá, na UTI, que pela primeira vez experimentei uma sopa de água.

Dia seguinte, rumo ao quarto, as duas enfermeiras que me conduziam, na maca, pelo corredores sombriamente iluminados do nosocômio, pareciam disputar uma maratona ou uma corrida de fórmula Um, tanto corriam as desgraçadas, fazendo curvas fechadas até travar, sem seco e sem freio ABS, diante da porta de um elevador que, simplesmente não chegava e quando chegou, simplesmente não descia, ou subia, agora não lembro, até que dias depois a porta se abriu e fui conduzido, a jato, para meu quarto, meu querido leito de hospital onde me aguardavam com festa, alegria, preocupação e, ai de mim, nenhum uísque, nenhum cigarro.

Mil visitas, dois mil telefonemas, o sono me torturava porque não me deixavam dormir, conheci umas doze enfermeiras de plantão e juro, durante o tempo em que lá estive, não houve uma única repetição de enfermeira, o que me impediu de iniciar um relacionamento sério, estável ou no mínimo amigável com alguma delas.

Confesso, aliás, que nem estava a fim.

Dia seguinte, a alta.

E é como me sinto, em alta.

Minha última declaração, sentado na cadeira de rodas (sim, paciente não sai caminhando, sai em cadeira de rodas) foi para um conhecido que, ao me ver na porta do hospital esperando o carro, perguntou o que havia acontecido, o que eu fazia ali?

Respondi:
- Nada demais, já estou indo para casa. Fiz uma extração da carótida direita.

O olhar dele, sinceramente, não foi bom para mim.
Última atualização em Seg, 26 de Agosto de 2013 08:10
 


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