"Onde Vivem os Monstros"

Em fevereiro de 2008, um blogueiro chamado Devin Feraci postou uma mensagem no site hollywoodiano de notícias CHUD com um anúncio solene: “Estamos prestes a perder um filme”.

Ele se referia à adaptação bilionária de “Onde Vivem os Monstros”, clássico da literatura infantil de Maurice Sendak. Segundo Faraci, executivos da Warner Brothers que viram uma primeira versão do filme o consideraram “demasiadamente esquisito e assustador” e naquele momento analisavam extensivas mudanças de elenco e refilmagens.

 

 

Divulgação

"Onde Vivem os Monstros" é o terceiro longa-metragem do diretor Spike Jonze

A notícia voou pelo submundo online de Hollywood. Alguns leitores chegavam a implorar ao estúdio: “Por favor, eu imploro, prossigam com o original!”. Outros tomavam um tom mais autoritário: “Não transformem ‘Onde Vivem os Monstros’ em algo comum, que pode ser esquecido facilmente!”. Houve apelos pela solidariedade de fãs e diversas ameaças de boicote, e um tema comum veio à tona: “Jonze é brilhante”; “Jonze é um artista”; “Confiem em Zonze!”.

Aos 39 anos, Spike Zonze dirigiu apenas dois longas-metragens: “Quero Ser John Malkovich” e “Adaptação”. Mesmo alcançando enorme sucesso comercial e de crítica e recebendo elogios pela originalidade e humor absurdo, as duas produções representam apenas uma pequena fração do trabalho de Jonze, tão admirado por seus fãs. Ele faz parte da primeira geração de cineastas a entrarem em cena através do mundo dos videoclipes – entre 1995 e 2001, foi escolhido por três vezes como melhor diretor no MTV Video Music Awards – e seu estilo inventivo e aventureiro é evidente não somente nos filmes de Hollywood que fez, mas também em seus vídeos, campanhas promocionais para o segmento de skates e comerciais de TV para empresas como Ikea, Nike e Gap. Esses pequenos trabalhos, que na opinião de Jonze não têm menor mérito artístico do que suas produções mais extensas, foram homenageados recentemente com uma retrospectiva no Museum of Modern Art de Nova York.

Jonze costuma manter-se longe de Hollywood, preferindo morar e andar de skate em bairros menos arrumadinhos, mas nem por isso menos descolados (Los Feliz em Los Angeles e o Lower East Side em Nova York). Mesmo assim, há muito tempo Hollywood o acolheu. Em 2000, “Quero Ser John Malkovick” recebeu três indicações de peso da Academia de Cinema, incluindo a de melhor diretor. Dois anos mais tarde, Jonze foi o diretor executivo de “Jackass: O Filme”, um conjunto desconexo de truques de montagem e pegadinhas produzido com apenas US$ 5 milhões e que acabou se tornando um sucesso inesperado, faturando mais de US$ 79 milhões de bilheteria. Em 2003, “Adaptação” faturou mais quatro indicações ao Oscar e uma estatueta (Chris Cooper, melhor ator coadjuvante).

Jonze parecia fazer parte daquela raça rara de cineastas americanos que tinham conseguido encontrar o caminho do sucesso comercial sem ter de seguir ordens de alguém. E eis que, neste verão norte-americano, ele resolve fazer seu primeiro grande filme de estúdio.

O livro “Onde Vivem os Monstros”, de Sendak, narra a história de uma criança que bate alguns pregos na parede com um martelo, é repreendida e, tendo de ir para seu quarto sem jantar, encontra alento e muita diversão em uma ilha de monstros que o declaram rei. Considerando sua própria propensão a travessuras, foi tentador ver a luta de Jonze com o estúdio (a qual já vinha ocorrendo há um ano quando conversei com ele no inverno passado) como uma personificação da eterna luta entre a criança em busca de liberdade e um pai autoritário.

Jonze diz que não era exatamente um filme infantil o que ele buscava fazer, mas sim uma representação precisa da infância. “Tudo o que fizemos, todas as decisões que tomamos, foi para tentar capturar a sensação de ter 9 anos de idade.”

 

Divulgação

Boatos de interferência do estúdio no filme mobilizaram os fãs do cineasta

Aos 9 anos, Spike Jonze ainda era Adam Spiegel, um garoto tímido e sensível de Bethesda, subúrbio de Washington. Seu pai, Art Spiegel III, neto do fundador da empresa de catálogos Spiegel, morava em Manhattan, onde comandava uma empresa de consultoria multimilionária no segmento de planos de saúde. Quando Adam tinha 2 anos, seus pais se divorciaram e sua mãe o levou, juntamente com sua irmã mais velha, primeiro para Nova Jersey e depois para a Filadélfia antes de se instalarem definitivamente em Bethesda. Mais tarde, Jonze veio a escrever que a disciplina era algo bastante “inconstante” em sua casa. Na escola, Adam se saía muito mal. “O que eles ensinavam não me interessava”, conta ele.

O que lhe interessava mesmo era BMX, atividade também conhecida como MotoCross. No verão de 1987, um dia depois de seus exames finais do colegial, Jonze e um amigo colocaram suas coisas no porta-malas de um velho Plymouth Colt marrom e seguiram para a Costa Oeste. No colegial, ela já havia escrito uma pilha de artigos freelance para a revista Freestylin’, especializada em BMX, e quando ele e seu amigo se aproximavam da Califórnia, deram uma guinada no Colt em direção a Torrance - cidade industrial a meia hora de Hollywood, onde se localizava a redação da revista.

Jonze foi contratado como repórter pela Freestylin’, mas ao final de um ano já se dedicava mais à fotografia. “Ele estava sempre experimentando: subindo em algum lugar mais alto, se dependurando na porta da van, acendendo uma fogueira ou enrolando alguém em papel alumínio para tirar fotos com flashes”, disse Mark Lewman, que era um dos editores da revista. 

Quando Mark Gonzales, criativo skatista profissional da região, abriu sua própria empresa de skates, a Blind, ele contratou Jonze pra fazer o vídeo promocional. Muitas das qualidades que viriam a caracterizar o trabalho de Jonze – a sensibilidade travessa, a ingenuidade técnica, a originalidade formal – surgiram pela primeira vez em seu vídeo de 24 minutos intitulado “Video Days”. O vídeo foi recebido como uma mini obra de arte no meio skatista e dentro de círculos culturais alternativos de Los Angeles e Nova York que admiravam a ética do skate.

Em 1994, Jonze foi convidado pelo Beastie Boys para fazer o clipe de “Sabotage”, o primeiro single do novo álbum da banda. Em 1999, a MTV escolheu “Sabotage” como o sétimo melhor videoclipe de todos os tempos.

“Sabotage” foi exibido na MTV em alta rotação em 1994 e, juntamente com outros clipes de Jonze, chamou a atenção de John B. Carls, produtor que acabava de abrir uma produtora de filmes com Maurice Sendak. Carls e Sendak tinham firmado um acordo de produção com a TriStar Pictures e sua empresa mãe, a Sony Pictures Entertainment, e estavam a procura de alguém para fazer a adaptação cinematográfica do livro “Onde Vivem os Monstros”. Eles também haviam comprado os direitos de diversos outros títulos infantis, dentre eles “Haroldo Vira Gigante”, aclamado livro ilustrado de 1955 de autoria de um dos mentores de Sendak, Crockett Johnson.

“Haroldo Vira Gigante” conta a história de um garoto que vive em um mundo imaginado por ele: tudo o que ele desenha se torna realidade. Jonze passou mais de um ano no projeto, mas dois meses antes de dar início à fotografia principal, a TriStar desistiu do projeto. Quando perguntei a Jonze sobre o assunto, ele encolheu os ombros e disse: “Eles não gostaram de minhas idéias, e acharam que ia sair muito caro”.

Ele me disse, porém, que o fracasso do projeto acabou lhe trazendo “uma estranha sensação de alívio”. Ele conta que a TriStar o vinha pressionando para fazer tornar o roteiro mais engraçado, e ele tinha cedido ao ponto de não mais reconhecer seu próprio trabalho. “Só então percebi que as coisas vão acontecendo muito lentamente. Se você cede um pouquinho hoje, você vai acabar cedendo um pouco mais no dia seguinte e quando levantar a cabeça vai estar longe demais de onde estava tentando chegar.”

 

Divulgação

O garoto Max parte rumo a aventuras distantes em um pequeno barco a vela

Jonze voltou a fazer o que já vinha fazendo antes: videoclipes rápidos, baratos e extravagantes. Propostas para filmes começaram a surgir aos montes, mas ele, porém, recusava uma a uma. Em 1997, um produtor chamado Sandy Stern ligou para ele reclamando: “Já te mandei todos os meus roteiros e você não pára de recusá-los. Não há nada que você queira fazer?”. Jonze disse que havia sim um roteiro: uma ficção científica bizarra de um roteirista de TV desconhecido chamado Charlie Kaufman. “Quero Ser John Malkovich” foi produzido em 1998 e estreou em setembro de 1999 com aplausos da crítica.

Aquele foi um grande ano para Jonze. Além de “Quero Ser John Malkovich”, também apareceu como ator ao lado de George Clooney e Ice Cube em “Três Reis”. Ganhou três MTV Music Awards, incluindo o de melhor diretor pelo videoclipe de “Praise You”, do Fatboy Slim – um hilário e esquisito documentário falso com duração de seis minutos. Ajudou a impulsionar Jackass na MTV. E em junho entrou para a realeza de Hollywood, casando-se com Sofia Coppola no famoso vinhedo de seu pai no Napa Valley. Para surpresa de Jonze, como de todo mundo, aos 29 anos ele tinha se tornado um dos diretores mais requisitados e bem relacionados de Hollywood. Enquanto isso, Sendak continuava procurando alguém para dirigir “Onde Vivem os Monstros”. Apesar de adorar o livro, Jonze não conseguia ver como poderia expandir uma história de dez frases em um filme de uma hora e meia. Ele se perguntou: “Como é que se adapta um poema?”

Sendak escreveu ““Onde Vivem os Monstros” em 1963, aos 34 anos. O livro gerou muitas controvérsias ao ser publicado: editores e críticos o declaravam assustador demais para as crianças. O que preocupava os adultos não eram somente as criaturas esquisitas, com suas expressões indecifráveis e dentes afiados como uma faca, mas também o garoto, Max, com seu comportamento e emoções brutais, sua recusa em escutar sua mãe. “Eu vou te devorar!”, ele diz a ela aos gritos – e rapidamente eram as crianças que estavam devorando o livro. Um total de 10 milhões de exemplares foram vendidos.

 

Divulgação

O livro que deu origem ao filme foi escrito por Maurice Sendak há quase cinco décadas

Em 2003, Jonze mais uma vez reabriu o livro. Ele vinha passando por um momento difícil. Depois de mais de uma década juntos, ele e Sofia Coppola estavam se separando. Ele se viu contemplando as criaturas esquisitas novamente. “Como seria a aparência delas? Como será que elas conversavam?”, se perguntava. Decidiu que elas deveriam conversar como pessoas, não como monstros. O diretor me disse que elas eram “seres emocionais complexos”, com um turbilhão de emoções estranhas dentro delas. Depois, ele começou a pensar que as criaturas estranhas na verdade seriam emoções estranhas, incorporando todas as coisas intensas que as crianças – e os adultos – às vezes sentem.

Jonze pediu a Dave Eggers, escritor de romances e de obras não-ficcionais, para escrever o roteiro com ele, e Jonze e Landay começaram a explorar os desafios práticos de levar a história às telas. Jonze queria que as criaturas estranhas parecessem reais, sujas e selvagens, e ao mesmo tempo, queria manter as proporções fantásticas dos desenhos de Sendak. Jonze e Landay se reuniram com criadores de bonecos. “Fomos até os caras que fizeram os dinossauros de Spielberg, a Henson Company”, lembra-se Landay. “Qualquer um que tivesse a metade do cérebro no mundo das criaturas diria: ‘Não tem como fazer isso. Você quer que essas criaturas tenham cabeças enormes, e quer que elas corram por aí do jeito mais esquisito possível? Ou você escolhe uma coisa ou a outra.”

Na primavera de 2005, Jonze apresentou o roteiro e suas idéias de produção para a Universal. A reunião não foi muito bem. Uma das questões envolvia os altos custos, mas, segundo Jonze, o problema principal era o roteiro. Como Eggers me explicou, os executivos estavam descontentes porque não havia “nenhuma trama real fácil”.

A Universal decidiu passar o projeto adiante e Jonze começou a tentar vender seu roteiro para outros estúdios. O presidente de produção da Warner Brothers, Jeff Robinov, tinha sido bem sucedido ao transformar cineastas tidos como mais independentes em diretores de mega-produções de grande sucesso – ele havia contratado Christopher Nolan para dirigir “Batman Begins” e Alfonso Cuaron para dirigir “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”. Eles firmaram um acordo e alguns meses mais tarde Jonze e sua equipe estavam em uma floresta do sul da Austrália para dar início às filmagens.

Os problemas começaram quase que imediatamente. Em julho de 2006, menos de seis semanas antes de começar as filmagens, as indumentárias de monstros criadas por Henson chegaram a Melbourne, onde Jonze e sua equipe tinham instalado seus escritórios. “Eram lindas!”, lembra-se Landay. Em seguida, os atores se enfiaram dentro delas e começaram a se mover. Jonze me contou que imediatamente pode perceber que as cabeças eram absurdamente pesadas. Jonze e Landay não tinham escolha, eles tinham de dizer ao pessoal da Henson para desprender as cabeças de 20 quilos e remover as pupilas mecânicas comandadas por controle remoto. Com aquela mudança, todas as expressões faciais teriam de ser geradas na pós-produção com o uso de computadores.

Ao final dos quatro meses de filmagens, Jonze disse à Warner Brothers que precisava de mais dinheiro para fotografia adicional. Os executivos responderam que primeiramente teriam de assistir a uma “versão de diretor” do filme. Havia também a questão da identidade: “Seria o filme intenso demais para as crianças? Seria seu público alvo suficientemente amplo?”

 

Divulgação

Spike Jonze procurou materializar nos "monstros" os sentimentos de uma criança

Robinov me contou que o vai-e-vem entre Jonze e o estúdio nos meses seguintes foi “um processo áspero”. Ele e Jonze tiveram uma série de “desacordos” em relação ao “tom, ritmo e clareza” do filme. Ele conta que era bastante incerto “qual versão, feita por quem, prevaleceria”.

Em março de 2008, Jonze entregou um roteiro revisado. Ele não havia feito grandes mudanças – uma cena removida e duas adicionadas – mas a Warner Brothers deu seu consentimento, dando a ele também o dinheiro que precisava para terminar o filme. Vince Landay conta: “Eu me perguntava se no fundo eles tinham esperança de transformar o filme em um ‘Shrek’”.

Em Hollywood, os heróis de filmes infantis de sucesso se enveredam por jornadas e buscas, acabam se perdendo e tentando encontrar o caminho de volta para casa. Sua motivação é precisamente declarada, seus obstáculos claramente identificados. Em “Onde Vivem os Monstros”, que estreou em outubro nos Estados Unidos, Max sai de casa, mas não em uma busca. Ele vê sua mãe beijando um homem que não é o seu pai e na próxima cena ele está de pé sobre a mesa da cozinha, com os braços cruzados sobre o peito, gritando: “Mulher, me alimente!”.

A explosão de raiva se intensifica, virando um festival de gritos, e Max irrompe em lágrimas e em seguida aparece correndo – para lugar algum em particular, apenas correndo, com o rosto ruborizado e lágrimas escorrendo. Não há uma princesa esperando por ele, ou pântanos que precisam de resgate, apenas seus confusos sentimentos de frustrações o movendo adiante. Max está confuso em relação à maneira como se sente e, para Jonze, tal confusão era exatamente como ele se sentia aos 9 anos.

Embora inúmeros fatores tenham contribuído para os intermináveis atrasos do filme, o que causou mais mágoa em Jonze em relação ao estúdio parece ter sido sua insistência em evitar uma narrativa mais tradicional, preferindo expressar de maneira direta, através de momentos e imagens, aqueles sentimentos brutos e selvagens.

A atitude de Jonze, muito mais do que a habilidade de contar uma história cativante, está na essência de quem ele é e porque é importante para as pessoas. Seus videoclipes não contam histórias, eles capturam sentimentos. Em praticamente todos os seus trabalhos o real e o banal se fundem com o extremo e o fantástico. Usando uma frase de Sendak para descrever sua criação mais conhecida, Max, Jonze habita um mundo no qual se pode “fugir da fantasia para a realidade com a convicção de que ambas existem”.

Inf.The New York Times

 
Copyright © 2011 Acontece Curitiba. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por LinkWell.