Um pastor na Argentina

Quando Valdomiro disse para o pai o que ia estudar, ele não entendeu. Ou fez que não entendeu. Não ouviu direito, sei lá. Enfiou o indicador no ouvido esquerdo, fez uma careta e perguntou:

- Cuméquié?

- Pastor, papai. Eu vou ser pastor.

 

O pai sorriu, não por contentamento pela infausta notícia, mas por julgar que se tratava de um sonho bem tosco. Sorriu ao imaginar as risadas da esposa e dos três filhos quando ele acordasse e contasse o tamanho absurdo que sonhara.

 

- Vocês nem adivinham! – diria ele. – Sonhei que o Valdomiro queria ser pastor!

 

E a família cairia na risada, que é o que acontece quando o subconsciente de alguém extrapola.

Mas não era um sonho. Valdomiro estava ali, na sua frente, em carne e osso, dizendo que ia ser pastor. O pai voltou a fazer careta ao se dar conta que o pesadelo era ao vivo e a cores.

 

- Pastor, Valdomiro?! – explodiu o velho. – Tu tá de onda? Tá me tirando pra mané? Ta me tirando pra otário?!

- Qual o problema em eu querer ser pastor, papai?

- Todos!

- E você preferia que eu fosse o quê?

- Um viado! Que fosse um viado, contanto que fosse um viado engenheiro! Ou um viado advogado! Ou um viado do raio que o parta, mas não um viado pastor!

- Eu não sou viado, papai.

- Mas quer ser pastor!

- Mas serei um pastor hetero.

- É claro! Não existe pastor viado!

- E nem padre.

- Padre, nem hetero é! É uma coisa assexuada! Você quer me matar de desgosto?! Seu dois irmãos tiveram uma formação respeitável! Um é médico, o outro é...Bom, o outro é enfermeiro...mas vá lá! Ainda assim, é melhor do que ser pastor!

- Eu descobri minha vocação. Recebi um chamado.

- De quem?

- Dele. – disse e apontou para cima.

Um dia antes, no andar de cima do sobrado...

 

- Vovô, estou me sentindo tão perdido...

- Por que, Valdomiro?

- Não sei o que fazer da vida.

- Na sua idade quase ninguém sabe. Eu mesmo, estou com noventa e cinco anos e ainda não decidi o que fazer da minha vida. Tudo tem seu tempo, Valdomiro. Tudo tem seu tempo. – filosofou.

- Já estou com vinte e um anos, vovô. Repeti a sétima quatro vezes. A inteligência nunca foi um dos meus predicados. Este ano finalmente encaro o vestiba. E não sei o que escolher. Não queria seguir os passos dos meus dois irmãos caretas e certinhos. Queria escolher uma carreira que irritasse profundamente o papai.

- Já pensou em ser pastor?

No dia seguinte, de volta ao pesadelo presente...

 

- O teu avô o quê?! – explodiu o pai.

- Shhhhhh! – sussurrou o menino, apontando para o teto. – Quer acordar o vovô do cominha dele? Ele me deu uma sugestão e eu achei bem jóia. Foi só isso.

- Pois fique você sabendo que eu não vou pagar uma...uma...Mas que diabos, eu nem ao menos sei se existe faculdade de teologia!

- Mas é claro que existe!

- Pois você que trabalhe pra pagar uma! Se vai me matar de desgosto, ao menos faça por merecer!

- Você pagou a faculdade dos meus irmãos! Inclusive a de enfermaria!

- Aquilo foi curso técnico.

- Pois eu faço um curso técnico de teologia.

- Não existe curso técnico de teologia, sua besta!

- Como você pode saber?

- Quer saber? Quer saber? Você tem toda a razão! Eu não sei! Não sei mesmo! E não sei mais quem é você também! Te renego como filho se você prosseguir com esta palhaçada!

- Me dê um bom motivo pra eu não me tornar pastor.

- Você é judeu, porra! Nós todos somos! Já olhou para seu próprio peru? Não sentiu falta de alguma coisa?!

- E desde quando um pastor não pode ser judeu?

- Isso só mostra o quanto você é burro! Nós não acreditamos que o messias já veio, nós ainda estamos esperando ele!

- Há 4.000 anos?! Olha, eu tenho a impressão que ele não vem!

 

Um tabefe do pai no rosto de Valdomiro acabou com a discussão. Desde então, nunca mais se falaram.

Faz quatro anos que não se falam.

Quatro anos mais tarde, na colação da louvação...

 

- ...E agora vamos chamar nosso próximo formando para receber seu certificado de conclusão de curso. Valdomiro Goldenberg.

 

Valdomiro subiu ao palco ao som dos aplausos de estranhos. Ninguém da família quis estar presente em uma cerimônia que eles consideravam um velório.

 

- Quero agradecer a minha família, que não pôde estar presente. – discursou Valdomiro, melancolicamente. – Meu pai Isaac, meus irmãos David e Jacó, minha mãe Eliá e meu querido avô Abraão, que está num lugar melhor agora. Num asilo lá em Bombinhas. Obrigado.

 

Um ano mais tarde...

Pastor Valdomiro estava tranquilamente trabalhando como estagiário de uma igreja, despachando alguns salmos, quando recebeu um comunicado de seu chefe.

 

- Você vai ser missionário.

- Sério? – sorriu Valdomiro, com o coração repleto de alegria. – E pra onde vocês vão me mandar?!

- Pro quinto dos infernos. – pensou o chefe, que considerava Valdomiro um boçal de primeira categoria, um pé no saco intragável. Mas não foi o que disse. – Vamos te mandar pra um lugar que precisa muito de Jesus.

- Pra onde, pra onde? Algum lugar da Europa?

- Não.

- Algum lugar da Ásia?

- Nanina-não.

- Humnn...Austrália?

- Passou longe.

- Pra onde, então?

- Argentina.

 

O queixo de Valdomiro caiu o chão e se quebrou em dez mil pedaços.  A faxineira teria trabalho para catar todos os estilhaços no dia seguinte.

 

- Argentina? Por que não me mandam logo pro inferno?

- Valdomiro! Não fuja das suas obrigações!

- Tá, tá! Eu vou! Saco!

No dia seguinte, em algum lugar da Argentina...

Em conversa com alguns hermanos, Valdomiro logo se deu conta que a coisa não ia ser bolinho pra ele. Os argentinos não tem a mesma implicância com os brasileiros que os brasileiros tem com os argentinos...Mas daí a vir um brasileiro em terra argentina e querer pregar a palavra de Deus...Pra tudo tem limite, né?

 

- Preciso improvisar. – pensou Valdomiro. – Se eu fizer uma pregação muito formal, não vai rolar. O que Jesus faria numa situação dessas?

 

Enquanto isso, no céu...

 

- Filho! – berrou Deus para Jesus, que estava no quarto navegando pela web. – Você já revisou aqueles mandamentos novos?

- Já, Papai! Já!

- Olha lá, hein? É coisa de suma importância! Joga tudo num pen drive que este PC aí vive dando pau!

- Deixa comigo, Papai.

- Você já salvou o arquivo, pelo menos?

- Eu sempre salvo, Papai. Sempre.

De volta a Argentina, no dia do culto inaugural com a pregação do pastor Valdomiro...

 

- Hermanos! – bradou Valdomiro para as duas fileiras de Argentinos a sua frente. A casa estava cheia, a platéia estava fria. E Valdomiro não sabia uma palavra sequer de espanhol, exceto pelo “hermanos”. Mas não podia dar-se ao luxo de preocupações tão vãs no momento. O que mais importava era fazer uma pregação digna de um Moisés.

 

- Hermanos! – continuou. – Estou aqui para espalhar a palavra do nosso Salvador.

 

Um argentino com a cara do falecido Zacarias bocejou na fileira esquerda. Outro enfiou o dedo no nariz descaradamente. Valdomiro teria mesmo que improvisar, despertar a atenção dos hermanos de alguma maneira.

 

- Hermanos! Hermanos, em verdade vos digo que Jesus Cristo era tão revolucionário quanto Che Guevara!

 

Silêncio absoluto na igreja. As pulsações de todos pararam por um breve instante. Todos focaram os olhos naquele pastor brasileiro, ali no púlpito, comparando Jesus com o nosso senhor Che Guevara.

 

- E vos digo mais, hermanos! Hombres de Deus! Hombres de Dio! Sua mãe, Nossa Senhora, era tão guerreira quanto Evita Perón!

 

Sorrisos tímidos estampados nas faces ruborizadas dos argentinos. Um deles já estava a ponto de aplaudir de pé, mas limitou-se a gritar um Viva! Muy Bien!

 

Valdomiro coçou discretamente a nádega esquerda, coisa que fazia quando estava muito excitado com algo. Sentiu que já havia ganhado a platéia.

Se empolgou.

 

- E sabem onde Deus descansou no sétimo dia?! Na Argentina, pois é o único lugar onde Ele podia se sentir em casa!!!

 

A multidão de fiéis irrompeu numa saraivada de aplausos e assovios. Muy bien, muy bien! Fiuuuuuuu!

Daí Valdomiro, encantado com a recepção do público, traiu a própria pátria.

 

- E eu não tenho a menor dúvida de que o diabo só pode ser brasileiro!!!

 

Muy bien! Muy bien! Viva!

 

- O Brasil só é penta porque fez pacto com o Coisa Ruim!!!

- Viva! Bravo! Muy Bien!

- Não é verdade que o Maradona tem a “mão de Deus”! Tem também os pés, o tronco, o coração e a cabeça!!!

 

Si! Si! Viva viva!

 

- Viva a Argentina!

Viva!

 

- Viva Jesus!

Viva!

 

- Diabo, vai pra puta que o pariu!

 

Viva! Viva! Viva!

Nunca mais se soube do pastor Valdomiro ter voltado para o Brasil. Sei lá se é um final feliz. Mas é um final.

Diego Gianni

(31/05/2011)
 
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