Tributo

“Chorar as pitangas”. Era assim que Seu Lépi Táfio, tratado por Seu Táfio, deveria estar registrado em sua carteira de trabalho. Mas não, lá estava:

 

“E-DI-TOR DE VÍ-DEO”.

 

 

E não era um editor qualquer. Primeiro, por ter mais de noventa anos e ainda estar na ativa numa das maiores emissoras de TV do Brasil.

Segundo, pela peculiaridade de seu ofício, que cá entre nós, é bem interessante. Não estamos falando de um mero editor de vídeo, alguém que manipula as imagens da vida, manipula a própria vida. Oh não. Seu Táfio manipula as imagens da morte.

 

Meia hora para começar o jornal nacional. Tudo preparado para o programa ir para o ar, daí morre o papa.

Desespero entre os jornalistas. O que fazer? O que fazer?!

Não criemos pânico! Seu Táfio tem a resposta, pois ganha seu ordenado para situações como essa.

Em menos de dois minutos, seu Táfio surge com uma fita. Nela, uma reportagem editada de dez minutos sobre os melhores momentos da vida do papa. No final, uma música em piano bem sentimental e uma imagem em câmera lenta do papa acenando para os fiéis na praça de San Pietro.

 

Assim Lépi Táfio, no alto de seus noventa anos, ganha a vida. Nenhum grande jornal pode correr o risco de ser pego desprevenido diante de uma morte que vale a pena ser mostrada, uma morte que dá audiência. Celebridades de idade já avançada fazem parte da coleção de fitas do Seu Táfio.

 

Fidel Castro. Niemeyer. Sílvio Santos. Pelé.

Todas estão devidamente editadas. Só aguardando...

Foi então que (e toda história só é história porque existe um “foi então que”), um dia, Seu Táfio percebeu que, quando ele morresse, ninguém teria editado uma fita em sua homenagem.

 

Isso porque você não é importante, velho.

Não terá vídeo nenhum com os melhores momentos da bosta da sua vida!

Afastou os pensamentos da cabeça. Se em vida ele nunca fora especial, em morte haveria de ser.

Tudo deveria ser meticulosamente, estrategicamente e tantos outros mentes de um plano bem traçado.

Um tributo de Lépi Táfio a ele mesmo.

 

(...)

 

Mãos enrugadas a obra. Seu Táfio pediu uma licença de dois dias para mergulhar no intenso trabalho de homenagear-se a si mesmo. Ninguém questionou a licença e nem cobrou-lhe atestado, afinal, por mais que gozasse de uma saúde de ferro, tinha lá seus noventa anos.

Como começar? Imaginou primeiramente a chamada que o âncora telejornalístico faria...

 

- O Brasil se despediu hoje de um dos maiores gênios que este mundo já teve a honra de conhecer. Morre Lépio Táfio, editor de vídeos desta emissora e embaixador da humanidade.

 

...Mas isso estava além do seu controle. Não podia antecipar o que o âncora falaria. O máximo que podia fazer era preparar uma fita com os melhores momentos da sua vida para entrar logo em seguida, e isso ia ser de arrebentar os corações.

Então, como começar?

 

“Lépi Táfio teve uma origem humilde. Filho de nordestinos, cresceu nas ruas de São Paulo perambulando entre os camelôs”.

 

Sim, o começo está bom. No Brasil só se respeita quem teve uma origem humilde, quem já nasceu com o burrinho encostado na sombra que cale a boca, dê valor pro que tem e não encha o saco alheio.

Nota digna de observação: é bem verdade que o velhinho não nasceu rico e teve que conquistar tudo o que tem...Mas nada digno de um vídeo póstumo que emocionasse os telespectadores. Sua vida era comum, não mereceria nem uma notinha de duas linhas no mais vagabundo dos folhetins.

Era preciso mentir, sem peso na consciência.

 

Lépi Táfio, que em 1989 deu a primeira martelada no muro de Berlim...

Lépi Táfio, que tentou toda a vida negociar a paz entre judeus e israelitas...

Lépi Táfio, que foi casado nove vezes e tem 37 filhos...

Lépi Táfio, que dividiu cela com Mandela e alimentou Madre Tereza...

Tirou a parte da Madre Tereza, julgou que estava ficando muito forçado. Mas deixou o resto e pensou com seus botões se as pessoas não reivindicariam sua imediata beatificação após sua morte.

Lépi Táfio era um santo. Indiscutivelmente.

A montagem estava feita. O vídeo ficou pronto. Como música de fundo, colocou sua preferida: Skyline pigeon, do Elton John. Desconhecia o significado da letra, gostava da melodia e ponto. Queria que sempre que as pessoas ouvissem a canção se lembrassem dele.

Dele, o saudoso Sir. Lépi Táfio.

 

(...)

 

Dois anos se passaram e a vida transcorreu normalmente. Acabou-se o que era doce quando Lépi pegou gripe, e desta não escaparia.

Foi internado pelos sobrinhos em um hospital. Deixou a UTI e foi para o quarto semi particular. Durante os dias em que nele passou, nenhum jornalista, nenhum fotógrafo, nem ao menos um colega que se importasse com sua condição crítica. No muito, cartões com estimas de melhoras.

Não importava. Para o diabo com todos, pensou Lépi Táfio. Passara os últimos dois anos avisando que havia um vídeo para ser mostrado no jornal nacional assim que ele morresse. Seus colegas lhe deviam isso. Daí todos iriam conhecer quem ele era, ou melhor, quem ele foi. Arrepender-se-iam de não terem dado o merecido valor para tamanho patrimônio bípede da humanidade.

Mas (da mesma forma, o que seria das conclusões se não existisse o “mas”?), assistindo o jornal nacional no quarto do hospital, Seu Táfio ouviu com horror a seguinte notícia:

 

- Incêndio destrói parte da nossa emissora local. Quatorze pessoas ficaram gravemente feridas. Todo o arquivo de vídeos foi tragicamente carbonizado.

 

Quando o lívido Lépi Táfio deixou cair o controle remoto no chão, só teve forças para pegar o telefone e ligar para seu substituto.

 

- Seu Táfio! Como o senhor está? Eu estou bem, graças a Deus! Só estou com o braço chamuscado e...Quê? Sim, sim, infelizmente perdemos todas as fitas no incêndio e...

 

O gancho do telefone fez companhia ao controle remoto. Ouviu-se um baque surdo no chão, Lípe estalou a língua e revirou os olhos para o teto branco e sem graça do hospital.

Tudo destruído.

Tudo virou pó.

Tentou respirar, e nisso colocou todas as suas mínguas forças.

Já não podia mais.

Nem uma nota, nem duas linhas num folhetim vagabundo. Era assim que ia ser.

As chamas daquele incêndio mataram sua morte.

O bip cardíaco do monitor acusou uma nota longa e única.

Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiip...

 

A enfermeira estava distraída assistindo o jornal.

 

 

Diego Gianni

(21/05/2011)

 
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