O mundo das palavras soltas

O fundo branco, a água rasa, o som das batidas na porta.

São fragmentos de uma lembrança de infância. Amélia tinha degustado uma sopa de letrinhas e algumas das letras ficaram presas em sua garganta.

- Cospe! Cospe! – gritou a mão, dando potentes tabefes nas costas da filha.

 

Não conseguia. O T travara no músculo do esfíncter e as letras não conseguiam descer.

Amélia estava morrendo.

Então a desesperada mãe puxou a filha pelos cabelos e a arrastou até o chão do banheiro. Ali, naquele santuário, disse para a filha palavras que ela nunca mais esqueceria.

 

- Enfia o dedo na garganta e vomita.

 

Disse isso e deixou a filha sozinha.

Amélia dobrou os joelhos, mas não para rezar, orar ou desconjurar.

Olhou para o fundo branco da privada.

A água rasa com resquícios de urina do pai que tentava salvar o planeta dando pouca descarga.

Enfiou o indicador dentro da boca e sentiu ânsia de vômito. As letras começaram a sair, uma de cada vez. A mãe bateu na porta e perguntou, agora mais aliviada.

 

- Amorzinho, está tudo bem?

 

Amélia cuspiu as letras que estavam entaladas na sua garganta. É óbvio que ela estava bem. Assustada, o coração a mil e a cabeça latejando. Mas estava bem. Estava viva. Estava viva e isso basta.

O engraçado é que Amélia jamais esqueceu dessa lembrança escatológica.

E hoje, Amélia vive em um mundo de palavras soltas.

Fala-se pelo prazer de falar. Todos vomitam palavras ao vento. As pessoas esqueceram do poder das palavras. Esqueceram que palavras provocam guerras.

Palavras mal colocadas se propagam no ar numa velocidade assustadora.

Não foram poucas as vezes que Amélia enfiou o indicador dentro da boca, esperando que saísse esta ou aquela letra. Mas não havia nada dentro dela. As palavras malditas e mal ditas tornaram o mundo superficial.

Foi num dia qualquer, vagando pela rua, que Amélia se deparou com o leilão das palavras.

Pessoas de rostos vazios, dispostas em fileiras sistematizadas, buscavam a liquidação das letras.

Duas consoantes exprimiam uma vogal e formavam a palavra paz, e tal vocábulo estava sendo vendido a preço de banana. Mas pasmem os senhores, ninguém quis comprar a paz.

A palavra amor, de tão banalizada, estava sendo vendida a preço de banana.

 

- Um lote da palavra amor com lance mínimo de um real! Quem vai querer?

 

Trilhões da palavra amor haviam se propagado pelo ar com o passar dos séculos. Era tanto amor que o amor perdera o sentido.  Para cada falsidade num “eu te amo”, o amor era jogado no lixo.

Ninguém quis comprar o amor.

Por impulso, Amélia quebrou as regras. Tomou coragem, respirou fundo, levantou no meio da multidão e ousou dar sua opinião.

 

- Não consigo vomitar as palavras. Guardo-as dentro de mim, e não porque elas sejam meu bem mais precioso. Acontece que eu respeito às palavras. Uma palavra mal dita e maldita pode machucar, mas uma palavra falsa de amor machuca ainda mais. O mal do mundo é um mal ético. As palavras nunca mais voltam para a garganta. Elas atingem rostos como se fossem tesouras. Ninguém esquece quando é atingido por uma palavra errada. Não dá para esquecer. Vocês cospem Deus, amor, paz, honra, ordem, progresso, como se fossem palavras quaisquer. A humanidade está morrendo pela boca.

 

Diante de rostos assombrados, Amélia deu as costas e foi voando para casa. Flutuando, seria a palavra certa.

Feliz, conseguiu vomitar uma palavra há muito presa em sua garganta: dignidade.

Deu então a descarga e foi tratar do almoço.

As pessoas fazem na vida púbica o mesmo que fazem na privada.

 

Diego Gianni

(18/06/2011)

 
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