Nem morto

Outro dia, ouvi um comentário espirituoso de um jornalista: é comum ouvirmos que “tal pessoa” morreu ao dar entrada no hospital.

Pois então, fica a dica: Não entrem nos hospitais, porque é lá que vocês vão morrer.

Gritem. Esperneiem. Se por uma infelicidade da vida você sofrer um acidente (toc, toc, toc) e meterem você dentro de uma ambulância, deixe bem claro:

- Não vou dar entrada no hospital! Me atendam na porta!

- Mas...

- Da porta eu não passo!

Hospital. Leva você a pensar. É um lugar que você adentra e implicitamente pede:

- Me conserta, faz favor.

É uma luta diária entre os médicos e aquela personagem que se veste de preto na nossa imaginação. Ela quer te levar e os médicos tentam impedir isso.

Enfarto. Derrame. Câncer. Uma pastilha de menta entalada na garganta. O nível de açúcar que foi para o espaço. O fígado que não agüenta mais aquela dosezinha.

- Bisturi! – grita o médico para a enfermeira.

É campeão, eles estão ali, tentando prolongar sua vida. E você talvez tenha ido parar ali porque passou trinta anos seguidos comendo um pote de paçoquinhas por dia.

Boa viagem, amigão.

Enquanto isso a vida continua, e numa tribo de índios qualquer o pajé decreta luto tribal porque o cacique morreu ao dar entrada na tenda.

Brincadeiras a parte, não deve ser fácil ser o tipo de médico que trava uma luta contra a morte todos os dias. Duas lutas, aliás. A dele, que também vai acabar um dia, e a luta pela vida dos outros.

E quando as coisas...”não saem muito bem”?  Já imaginaram o tamanho da carga emocional, o peso da responsabilidade de tentar salvar uma vida?

Não é exatamente o tipo de profissão em que você pode se dar ao luxo de cometer um errinho...

E é aí que entram os cadáveres, assunto principal deste texto e que só vem a tona agora. Poeticamente (e morbidamente) falando, alguns mortos fizeram mais por nós do que qualquer coisa que já tenham feito em vida.

Todo mal que hoje “tem cura”, é porque já foi testado milhares de vezes. Nos mortos.

Bom, não exatamente para ver como os mortos reagiam (antes que algum engraçadinho fale isso), mas para conhecer o labirinto que é o nosso corpo.

Os egípcios foram os primeiros a praticar o que hoje conhecemos como a anatomia, conhecer a morte para compreender melhor a vida. De múmias eles não tinham nada.

Em suma, muito do que matava antes, não mata mais. Muito do que antes tanto fazia os que ficam sofrerem pelos seus mortos, não faz mais. O que leva a uma pergunta sem resposta para a ciência:

- Quando acaba a vida?

Porque sempre fica aquela sensação de que “ainda daria para fazer alguma coisa”. Viajar no tempo mil anos pra frente e descobrir uma centena de curas para o que mata hoje e daqui a cem anos não mais matará.

Fala-se muito sobre a “imortalidade”. Não sei se teríamos paciência para suportar a eternidade. Haja coisa pra quebrar o tédio.

Se não morrêssemos nunca, você com certeza não estaria lendo este texto, nem qualquer outro que refletisse sobre a melancólica questão de um dia simplesmente deixar de existir.

Mas talvez, você também não tivesse o livro do Don Quixote sobre a cabeceira. Nem O pequeno príncipe, nem qualquer outro clássico literário. Por quê? Porque a criatividade está totalmente atrelada ao fato de sabermos que um dia vamos morrer.

E você consegue lembrar de um bom livro ou filme que não tenha morte?

O que dizer da filosofia, então? Pra que pensar, se sempre vamos existir?

Vamos mais longe: o que seria das religiões sem a morte? Não seriam nada. Grande parte dos adeptos de qualquer religião não as abraçam por amor ou devoção, mas sim, por medo, medo de morrer e ir parar no quinto dos infernos.

Ah, e quanto a monogamia?

Sejam sinceros, senhoras e senhoras. Casar até que a “morte os separe” é uma coisa, mas e se não tivesse morte pra separar?

- Eu vos declaro marido e mulher, por toda a eternidade.

Seria complicado para ambas as partes, especialmente devido a uma palavrinha já mencionada aqui neste texto:

Tédio!

Quem sabe é a droga do tédio que fez você dar entrada no hospital, pois você só se empanturrou de paçoquinhas porque não tinha mais o que fazer e se viciou nelas!

Tudo bem, é um texto mórbido. E confesso que amo escrever sobre a morte, se você confessar que ama ler sobre a morte.

Porque mesmo para quem ama as coisas mais descabidas, serve o consolo de que, bem ou mal, só quem vive pode amar.

 

 

Diego Gianni

(13/05/2010)

 
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