A versão

Nada se falou sobre a versão de Inácio a respeito daquele dia, quando tudo e pouco mais era estranho à vida dessa pobre criatura. A verdade é que tanto a versão dele quanto a versão da parte contrária continha uma singularidade: ambas não faziam o menor sentido.

Como explicar o ódio? Sim, pois a falta de sentido não diz respeito somente ao amor. O ódio, talvez, é ainda mais inexplicável. Na natureza animal não existe aversão, mas tão somente o instinto, e o instinto, para o animal civilizado que é o homem, geralmente fica enclausurado e faz parte da composição daquilo que é chamado de humanidade. Não seria, portanto, demasiado injusto atribuir algo tão forte quanto o ódio a um instinto primitivo do homem? Quem se atreveria a dizer que a palavra humano está relacionada a boas atitudes?

Bom, divagações a parte, quando Inácio despertou para aquele enigmático dia, não podia supor que viveria o surreal. O sofrimento pelo qual ele passou só poderia ser visto em algum filme, livro, ou mesmo uma crônica idiota de um domingo de manhã.

Saiu do elevador e atravessou a portaria em direção a rua. No curto espaço de nove passos miúdos, cumprimentou o porteiro Doacir, como de costume.

Doacir não respondeu, como também não sorriu. Inácio pensou que talvez o porteiro, geralmente simpático, simplesmente não tivesse ouvido. Sabia que ele o tinha visto, isso com certeza, mas qualquer motivo que pudesse justificar porque Doacir não retribuíra o cumprimento, de nada poderia ter relação com não simpatizar com Inácio. Se fosse isso, por que exatamente nesta manhã? O que Inácio poderia ter feito para provocar tamanha aversão de um porteiro que, afinal de contas, nem era seu amigo?

Mas Inácio costumava ir a pé para o trabalho (expressão meio tosca, posto que não tiramos os pés para dirigir ou entrar numa condução), o dia estava lindo e até então não havia a menor razão para levantar a bandeira do mau humor. Não por causa de um porteiro supostamente distraído ante a educação politicamente correta do civilizado Inácio.

A parte surreal de tudo começou ali, naquele trajeto de algumas quadras até o cartório onde Inácio trabalhava de segunda a sábado, com isso garantindo seu aluguel, supermercado, luz e internet e acreditando ser feliz e bem realizado no alto de seus trinta e cinco anos.

Todas as pessoas que cruzavam com Inácio pelo caminho olhavam para ele da mesma maneira: uma expressão de ódio, rancor, um misto de nojo e aversão. Após os primeiros olhares que não passaram despercebidos ao inseguro Inácio, ele tratou de convencer-se de que não, que bobagem, impressão minha, o que eu fiz para essas pessoas? Eu nem as conheço!

Acontece que uma das mulheres que passaram por ele, uma senhora bonita de aparentes sessenta anos, não se limitou a apenas dirigir um olhar atravessado para nosso protagonista. Inacreditavelmente, parou na frente dele e cuspiu-lhe no meio da face. Inácio, em choque, não reagiu. O tempo de seu cérebro processar o absurdo não foi tão rápido quanto o tempo da senhora seguir seu caminho, sem se desculpar pelo que fez, e mais ainda, sem explicar.

Inácio limpou o rosto com a manga do paletó e aproveitou para dar uma olhada para si mesmo. Seu zíper da calça não estava aberto. Seus sapatos estavam no lugar certo, cada qual em seu respectivo pé, sua camisa estava abotoada e, lembrava-se bem, havia feito a barba e escovado o cabelo como sempre, da mecha esquerda para o leste. A única explicação possível era que aquela senhora só podia ser uma louca, uma desvairada, uma cretina que deveria estar internada em algum sanatório.

Se fosse só ela, o dia ainda podia seguir normal, mesmo com Inácio tendo a mais convicta certeza de que, enquanto vivesse, jamais esqueceria da cusparada que levou no rosto. Logo ele, um pagador de impostos, um homem de bem, um cidadão descente que só tinha pensamentos impuros entre quatro paredes, como qualquer pessoa que carrega implicitamente o certificado de conduta pela faculdade hipócrita de civilização.

Mal colocou os pés no cartório, passando pela porta giratória, e suas duas colegas de repartição dirigiram-lhe o mesmo tipo de olhar. Para elas, Inácio podia perguntar.

 

- O que há de errado comigo?

 

Enquanto uma delas permaneceu olhando com profundo desprezo para Inácio, a ponto de escorrer-lhe uma lágrima do olho esquerdo, a outra fez que ia vomitar e correu para o banheiro.

 

- O que foi, meu Deus? – insistiu com angustia Inácio, apelando para o Inexplicável para que o inexplicável tivesse resposta.

- Eu odeio você! – gritou Analice, chamando a atenção dos demais presentes.

 

Inácio tentou refletir sobre o que poderia ter feito para Analice. Nada! Ele nunca tinha lhe feito nada! Eram colegas, tratavam-se bem e não havia e nunca houve o menor sinal de atração sexual entre eles. Tinham, até então, uma relação puramente profissional e digna de respeito.

 

- Sai daqui! Seu monstro! – tornou a gritar ela. O chefe de Inácio se aproximou e exigiu que Analice explicasse a razão de tamanha histeria, mas ela estava ocupada demais berrando e insistindo para que Inácio se retirasse dali imediatamente.

 

O chefe bem que teria tomado o partido de Inácio. Era o que teria feito, não fosse um dia tão incomum, pois quando botou os olhos no perplexo Inácio, engoliu em seco o ódio e sussurrou com todas as forças que podia, se controlando para não agredir Inácio fisicamente.

 

- Some daqui. É para o seu próprio bem.

 

Incapaz de reagir, Inácio recuou com as pernas tremendo para a porta giratória, mas não saiu para a rua antes que Analice avançasse sobre ele e pregasse as unhas vermelhas sobre seu rosto.

 

- Monstro! Monstro! – gritava ela.

- Some daqui, desgraçado! – urrou o chefe, segurando Analice como podia. Os outros funcionários já começavam a cogitar agredir Inácio fisicamente. E Inácio fugiu como o pior dos criminosos.

 

Uma pequena multidão havia se juntado em frente ao cartório. Alguns carregavam pedras e pedaços de madeira nas mãos.

 

-E ele! – gritou um médico respeitável que clinicava não longe dali.

- Morte! – berrou um jovem visivelmente viciado em crack.

 

Inácio levou uma pedrada no lado esquerdo do rosto. Sabia que se fraquejasse ou esmorecesse, morreria ali mesmo.

Morreria sem saber.

Sangrando e assustado, esquivou-se como pode da chuva irracional de pedras e palavrões e correu para bem longe. Tinha que voltar para casa e sair logo deste pesadelo, pesadelo real e irreal.

Entrou correndo no prédio, com medo de ter sido seguido por alguém. Para sua sorte (vamos chamar de sorte), o porteiro Doacir estava no banheiro das dependências, portanto, Inácio pôde subir de elevador para seu apartamento sem cruzar com mais ninguém que lhe odiasse.

E odiasse por quê?

Inácio deu duas voltas completas na tetra chave da porta, sentou ofegante no sofá e chorou compulsivamente. Tentou refletir por que todos lhe odiavam, alguma coisa ele tinha que ter feito. Tentou convencer-se de que era um monstro e merecia sim, fenecer. Sua morte traria justiça para o mundo, o mundo seria um lugar melhor.

 

- Não, não, não! – repetiu em pensamento, como um louco. – Eu sou um homem de bem! Eu sou um ho...

 

Alguém cujo rosto nunca vamos conhecer atirou uma pedra na janela (pois o desgraçado morava no segundo andar). Inácio olhou assombrado para os cacos de vidro sobre o tapete violeta. Outro alguém (quem sabe o mesmo alguém) gritou lá de baixo:

 

- Desce, seu animal! Desce ou nós vamos até aí!

 

Como uma criança, Inácio se trancou também em seu quarto, se ajoelhou num dos cantos do cômodo e escondeu a cabeça entre as mãos. Tremia como nunca e balançava com nervosismo de frente para trás, um verdadeiro autista.

 

- Me deixem em paz! – sua alma gritava.

 

Ouviu batidas na porta, batidas fortes, socos e pontapés. Sabia que dariam um jeito de arrombá-la, a porta era pouco para tanto ódio.

Foi aí que Inácio correu para o banheiro, pegou uma gilete recém comprada e...Bom, é isso.

Foi isso.

Quando o sangue de Inácio ainda escorria pelo ladrilho, sangue já independente de qualquer pulsação, não batiam mais na porta. Assim que morreu, o ódio cessou. E os estranhos se olhavam lá fora sem compreender o que estavam fazendo ali.

As pedras foram devidamente postas no chão e a vida voltou ao normal.

Não se soube por que Inácio, aquele gentil morador do 202 B, havia se matado. Oras, que ato inexplicável de covardia! O porteiro Doacir ainda comentaria por muito tempo:

 

- Puxa vida. Logo ele, que era tão gente boa. Um poeta! Um verdadeiro poeta!

 

Filosoficamente, comentou-se aqui e ali que Inácio era bom demais para viver em um mundo de tanto ódio.

 

Diego Gianni

(05/06/2011)

 
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