Lógus e Mítio

Eram dois os anjinhos que moravam na borda de um satélite a rodear o planeta Terra. Satélite, em tempo, destroçado, teimoso em orbitar sobre o extinto planetinha.

 

Lógus: Parece que faz tanto tempo.

Mítio: E faz.

Lógus: Parece que foi em outra vida.

Mítio: E foi.

 

Não tinham o que conversar, exceto pelas memórias. Lembranças e eras de uma vida que já era.

Lógus tinha sérias dúvidas sobre a vida ter existido. Mítio acreditava de todo o seu coração.

Convenhamos que a vida em si independe de alguém crer nela ou não, seja homem, seja bicho, seja anjo.

Conversavam.

 

Mítio: Você lembra dela?

Lógus: Dela?

Mítio: Da humanidade.

Lógus: Sim. Acho que estou enlouquecendo.

Mítio: Lembranças te machucam?

Lógus: Só as que nunca aconteceram.

 

Não retrucou. Mítio sabia que Lógus estava cego e sofrido. Conhecia-o como a palma de sua pequena mão. Eram amigos há infinitos trinta segundos de eternidade.

 

Mítio: Ah, mas você lembra como era? No começo?

Lógus: Sim. Se eu fechar os olhos...Se eu fechar os olhos posso lembrar de tudo.

 

E lá estavam os deuses. Dezenas, centenas. Do raio, da chuva, das brisas, do amor. Nasceram da imaginação fervorosa dos homens que tentavam de alguma maneira explicar o mundo.

Explicar a vida!

 

Mítio: Está vendo o que eu estou vendo, Lógus?

Lógus (sorri): Os filósofos.

 

Era um tal de Sócrates, sujeitinho cheio de ironia. Queria que as pessoas pensassem, queria que o mundo humano fosse mais justo.

 

Mítio: Olha lá, Lógus! Estão julgando o pobre homem!

 

E Sócrates foi condenado à morte. Suas palavras se perpetuaram com o tempo. O homem deveria conhecer profundamente a natureza.

 

Mítio: Olha lá Platão olhando as sombras dentro da caverna! Ele sempre foi um dos meus preferidos!

Lógus: Não quero ficar lembrando dessas coisas. Os filósofos gregos me deixam triste.

Mítio: Eles foram bons homens.

Lógus: Por isso mesmo!

Mítio: Então vamos lembrar de outra coisa. Feche os olhos. Está vendo?

Lógus: Tudo está escuro.

Mítio: É a idade das trevas.

Lógus: Com castelos tão lindos? Eu diria que não! Quem chamou tudo isso de trevas?

Mítio: Homens que ainda não nasceram.

Lógus: Nasceram sim! Estão todos mortos!

Mítio: Estamos brincando de lembrar, Lógus.

Lógus: E para quê?

Mítio: Enquanto houver alguém para lembrar, eles serão imortais.

Lógus: Pois pra mim parece uma tremenda perda de tempo!

Mítio: Tempo perdido é aquele que nem existe.

 

Enquanto ganhavam tempo dialogando, a era medieval passou e Deus não era mais o centro de tudo.

 

Lógus: Deus está morto!

Mítio: Nunca havia reparado neste seu bigodão, Lógus.

 

Os iluministas e o renascentistas carregavam lamparinas em suas bolsas de couro. E veio a revolução francesa, revolução industrial, a máquina a vapor e o mundo começou a ficar cheio demais.

Incoerente demais.

Injusto demais.

 

Lógus: E foi aí que o mundo começou a acabar.

Mítio: Acabou nada.

Lógus: Abra seus olhos, Mítio! Só há pó sobre este planeta gelado! Não há mais ninguém pra chorar por este sol morto!

Mítio: Eu choro. Eu choro.

 

Mítio chorou tanto, mas tanto, que a terra da Terra sentiu algo que não sentia há milhares de anos.

O gosto da chuva.

Nenhum guarda chuva foi aberto pelos homens. Capitalistas, democratas, socialistas, reis, senhores do campo, seres cibernéticos, todos estavam mortos...

Mas não aos olhos de dois anjinhos que sofriam, cada qual a sua maneira.

 

Mítio: A humanidade era uma coisa engraçada.

Lógus: Era nada! Nunca foi!

Mítio: Primeiro os deuses, depois Deus, depois o homem. Cada qual no seu tempo, cada qual tentando ser o centro de tudo. Uma eternidade é muito pouco contar a história dos homens.

Lógus: Isso nos leva ao meu argumento sobre perda de tempo. Vem! Vamos embora. Deve haver vida em algum outro lugar do universo.

Mítio: E se não encontrarmos?

Lógus: Continuaremos buscando.

Mítio: Não. Muito obrigado. Prefiro me agarrar ao que tenho. Minhas lembranças fazem de mim um porto seguro. Não quero arriscar.

Lógus: Fique então com suas lendas.

Mítio: Não são lendas!

Lógus: Adeus, Mítio.

 

Lógus voou para longe e Mítio voltou a chorar, agora mais ainda. Ele não viu suas lágrimas tocarem a terra. Não viu que as sementes, assim como os homens, já não dispunham de luz alguma.

Toda a Terra era um deserto sem ninguém que pudesse lembrar.

Toda a terra era.

Era.

Foi então que Mítio se sentiu tão sozinho que gritou para o nada:

 

Mítio: Deus! Onde você estava quando a humanidade morreu?

 

E Deus, que por acaso também estava sentado naquele satelitezinho, respondeu com dor:

 

Deus: No mesmo lugar que estava quando meu filho morreu.

 

Mas Mítio não ouviu.

Ninguém ouviu.

 

 

Diego Gianni

(19/03/2011)

 

 
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