Sintomas

Estava eu a ver navios, da janela do meu quarto quando, num surto de lucidez, percebi que as alucinações finalmente haviam me dominado.

Ora, como eu poderia ver navios se, da janela do meu quarto, tudo o que há para ver são telhados e edifícios?

Estabeleci um debate, profundo e polêmico, comigo mesmo, do qual saí obviamente vencedor: eu estava mesmo a ver navios.

Como prova de que eu estava com a razão, apontei para uma caravela singrando os mares do sul, dois destróieres fazendo testes com canhões subsônicos e um submarino nuclear submerso, lançando um míssel atômico ao éter, para ver se funcionava.

Até me espantei com a amplitude visual da janela do meu quarto, permitindo tanto alcance do espectro de cores e regozijei minha sorte de morar ali onde, bastava eu querer, podia ver navios à vontade.

Um barco de pescador passou à deriva e logo pensei que no fantasma do pescador, que singrava, mãos firmes no timão e olhos ao longe na linha do horizonte, cachimbo e barba mal feita, além de alguns borrifos de desodorante vencido, brilhando na testa.

Algumas horas depois, cansado de ver navios, voltei-me para a parede do meu quarto, onde em altíssima velocidade um kart de corrida passou, levantando a poeira da curva.

Estirei meu corpo na cama, pronto para receber uma massagem de sal grosso, mas o produto estava em falta, tive que ser massageado com sal fino.

É a mesma coisa, mas não é igual.

Lentamente, quase como quem não quer nada, abri a caixa de isopor e peguei uma cerveja quente, que depositei ao lado da minha moto, apenas para decorar o ambiente, porque sede eu não tinha.

Mais horas passaram, dias talvez, e abdiquei de esperar e, sem um suspiro para alegrar a cidade, cocei a barriga com força, até arrancar as sanguessugas que me fazem companhia, quando me sinto entendiado.

Dois anos depois, apesar dos pesares, voltei à janela e continuei a ver navios, como já se viu, o meu passatempo favorito.

 

Paulo Wainberg


Última atualização em Qua, 08 de Agosto de 2012 14:25  
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