Ananse

Escuite, suncê: antigamente, não havia história pra contá.
É a lenda do véio Ananse, que um dia teceu uma teia de prata atéééé o céu e voltô cum baú que guardava todos os causo do mundo. Mai claro, num foi fácil: teve que entregá a Nyame, guardião das história...
Os olhinhos de Ana piscam, persianas preguiçosas em um dia faceiro. Ela ainda ouve a voz gutural vinda do alto.
... três cousa: um leopardo que era o cão de brabo, os maribondo que picam como fogo e Moatia, a...
Dormiu.
- A fada que ninguém viu. – completa o avô. Beija a testa da menina, se ergue do pé da cama, apaga a luz e vai embora.
A criança embarca para o mundo de Morfeu, tão longínquo das lendas africanas... Vô Benedito logo seguirá para outro mundo. Antes, balança o corpo calejado na cadeira da varanda, o manto negro das estrelas a cobrir o derradeiro céu e o canto das cigarras marcando o tempo daqueles que só calam quando morrem.
Sem saber, vô Benedito pita tranquilamente seu último cachimbo.

(...)

Caminham feito equilibristas na tênue linha do irreal, avô e neta. Ana abre um sorriso do tamanho da infância que ainda guarda.
- Vovô, o senhor veio me visitar em meu sonho!
Benedito ri gostosamente e pisca o olho torto em direção ao céu.
- Suncê num sabe? Tenho pra mim que aquelas nuvem são do meu cachimbo e não vou mais acordá. – esclarece. – A travessia de volta pra realidade, minha menina, tu fará sozinha. Minha cadeira já não balança. Por aqui me fico, para lá num volto.
Os olhos da menina fazem fluir um rio que desagua na tristeza. Ele se zanga.
- Não seja boba. Teu avô teve vida longa e foi um homem livre, num sabe?
Andam deixando os pés se molharem nas águas que o devaneio leva. É noite. Há uma festa ali perto, festa junina com muitas crianças dançando ao redor de uma fogueira.
- Esta festança aconteceu no colégio. – observa a menina. – Vê? Nenhum menino quer dançar comigo. Com a negrinha.
Benedito interrompe o passo, olha bem para a cria de sua cria.
- Nunca disse a suncê que a vida é fácil.
A criança ergue o rosto, como se o avô fosse um pássaro prestes a fugir. Benedito belisca a bochecha da neta.
- Mas tenho pra mim que, pra donde eu vou, a vida não se divide em cor.
Ana estranha:
- Vida?
O velho sorri e tateia os bolsos por reflexo, na busca do pito que não carrega mais.
- Vou encontrar Nyame e pegá dele o baú das história. Palavra. Daí mando pra suncê.
A criança se assusta com o peso da responsabilidade, vocábulo extenso que aprendeu recentemente.
- Mas eu não sei contar histórias!
Vô Benedito fica na altura dos olhos assustados de sua princesinha.
- Num quero que conte. Quero que viva.
Só então a menina percebeu que o avô já era um pássaro. E foi voando pra longe, longe, longe, até a criança despertar.
Acordou com o choro sentido da mãe. “O papai morreu”, ouviu a mãe dizer pelo telefone.
Mas Ana sabia, de todo o coração, que o avô tinha apenas ido viver outras histórias.
Num sabe?

Diego Gianni

 
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