Dito por não dito

Ele entra no mercado e pergunta a um qualquer:

 

- Onde fica a seção de bocas?

- Bocas? – estranha o qualquer.

- Bocas! Necessito de muitas bocas!

- E para quê?

- Preciso ir pra Roma!Urgente!

 

Sai munido de uma sacola de bocas e vai direto para o velório de um estimado amigo. Causa mortis: curiosidade. Suas últimas palavras?

 

- Miau.

 

Homenagem feita, vai a todo vapor para a rodoviária. Ônibus de São Paulo para a Itália só sai uma vez por dia. Por isso, ele corre com toda a pressa, só parando no caminho para comer algo. Cru, naturalmente.

Ele se perde, se atrapalha, escurece e gatos pardos desfilam pela avenida. Ele lembra do falecido amigo, então derrama um copo de leite no chão e chora feito criança, tal como a noite costuma ser.

De nada adianta.

 

Um cão sem dono cruza a ruela e põe meia dúzia de felinos para levitar. O louco se aproxima do cão, que ladra. Ele exclama:

 

- Que ladra!

 

Há uma bela bandida descendo a sacada por uma trepadeira. O peito dele se aquece na noite fria e deseja que o verão chegue logo, mas bah, há só uma andorinha em sua bagagem!

Se distrai com o rebolado da gatuna e oh, puxa vida, que lástima, o ônibus já zarpou para a terra das porpetas. O que faz então é desacelerar, pois acha que com isso chegará mais longe.

Tristeza vira chuva, que vira garoa, virá tempestade e a noite ainda é noite. De manhã, a bonança! Anda a passos lentos, sabe que quando sentir aroma de pizza no ar é porque está perto.

Toca o celular. Ele atende, sabe tocar celular de ouvido.

 

- Alou?

- Sabe quem bateu as botas?

- Sei. O gato. Fui na cremação, vi o pobrezinho voltar ao pó.

- Não, não. Agora, a Inês é morta.

 

Desliga, desconsolado. Dia de tragédias, dia sem fim. Abre a boca para gritar e entra uma mosca nela, deixa a sacola de bocas cair, se desnorteia todo, bate em pedra dura e fura o dedão do pé.

É levado algemado até um tribunal. Lá o decepam, antes mesmo de ser julgado. É a lei.

Há centenas de milhares de outras cabeças esperando por sua vez, cada qual com sua sentença.

Logo agora que Roma estava tão perto...

A pena é dura. É extraditado sem direito a apelação para a terra do monarca caolho. Lá, arrancam sua visão. Pobre cabeça, sem olhos, sem eira nem beira.

Aceita de forma humilde ser trancafiado numa casa com telhado de vidro. O vizinho ferreiro há de lhe torturar para todo o sempre com espetos de pau.

Sua cabeça é posta sobre a mesa da sala. Não há muito a que ver, exceto pela imagem de um santo carismático logo ali na cômoda. E ele não faz milagre. Mas também, que se dane, a cabeça é cega e nem sabe que o santo está perto.

E vem o ferreiro e vem o castigo, cutuca aqui, cutuca lá, duas, três vezes pelos dias que não passam nunca. Se é que é dia. Se é que é noite.

E o frio...Ah, o frio! Faz a cabeça gemer e murmurar:

 

- Quero fugir desta noite de inverno, mas só há uma andorinha em meu coração!

 

Deus fecha uma porta e abre uma janela. Tolices de carolas. Da janela vem um vento gélido e faz a cabeça rolar sobre a mesa.

Ela cai, mas do chão não passa.

 

 

Diego Gianni

(26/08/2011)

 
Copyright © 2011 Acontece Curitiba. Todos os direitos reservados. Desenvolvido por LinkWell.